Pensata

João Pereira Coutinho

23/02/2009

Oscar minuto a minuto

Existem jornalistas que cobrem guerras, furacões, terremotos. Esses são os corajosos. E depois existem os jornalistas verdadeiramente heroicos: jornalistas que passam mais de três horas a assistir ao Oscar (sem dormir, ou quase), acompanhando a cerimônia minuto a minuto. Esse ano, e em nome dos leitores desta Folha, eu próprio experimentei o abismo.

Primeiras impressões: a Academia já falhou várias vezes, e eu lembrei aqui, em texto passado, alguns esquecimentos homéricos. Esse ano, porém, Hollywood superou todas as minhas piores expectativas. Não acreditam? Confiram.

0h01
Hugh Jackman entra em cena. Jackman sempre me pareceu um Clint Eastwood mais novo, embora seja impossível discernir qualquer talento por ali. "Australia", o filme, confirma-o. Esperemos que Jackman não lembre o seu papel em "Australia".

0h02
Hugh Jackman lembra o seu papel em "Australia".

0h03
Momento musical de Hugh Jackman com "medley" sobre os filmes indicados ao Oscar. Saudades de Billy Cristal. (Já?)

0h13
A Academia terminou a sua tradição de pedir ao ator coadjuvante do ano anterior para entregar o Oscar à atriz coadjuvante do ano presente. Dessa vez, surgem cinco atrizes no papel de vestais dispostas a defender a irmandade. O que sobra em grandiloquência, falta em sentido de humor. Bocejo. Perderam-se também os "clips" preciosos das atrizes indicadas antes da revelação triunfal. Esse ano, das cinco eleitas, minha escolha era Marisa Tomei, em "O Lutador". Vence Penélope Cruz, por "Vicky Cristina Barcelona", um filme menor de Woody Allen, onde Penélope encarna o supremo clichê: a espanhola fogosa e desequilibrada que gosta de tratar o amante como os espanhóis tratam os seus touros, ou seja, a golpes de morte. É o segundo ano consecutivo que Hollywood premia um espanhol, depois de Javier Bardem. A "hispanidade" começa a ser a segunda pele dos nativos. Para quando um mexicano?

0h23
Tina Fey na imagem. Steve Martin também. O segundo nunca me convenceu. A primeira convenceu-me desde o primeiro momento em que a vi na série "30 Rock", um dos maiores prodígios do humor contemporâneo. Aproximo-me da tv: onde está a cicatriz encantadora que Fey tem junto à boca? Desapareceu. Pasmo. Merecia o Oscar de efeito especial.

0h26
Melhor roteiro original: "Milk". Curioso. O panfleto gay é levado a sério na Hollywood do século 21. Curiosamente, o vencedor Dustin L. Black ainda acredita que está no século 19 e disserta emocionalmente sobre "o amor que não ousa dizer o seu nome". Em que planeta vive o rapaz? Risos mil.

0h30
Melhor roteiro adaptado: seria intolerável que a Academia optasse por "O Curioso Caso de Benjamin Button". Eric Roth inspirou-se no conto de Scott Fitzgerald para simplesmente o desfigurar. Ao contrário do conto, não há em "Benjamin Button" (o filme) qualquer sombra de humor, profundidade ou propósito. O resultado é conhecido: um não-filme sobre uma não-vida, tudo servido com uma autocomplacência visual que desconhecia em Fincher. O vencedor é "Quem Quer Ser um Milionário", o filme de Danny Boyle que tem o seguinte diálogo entre o favelado e a sua princesa:

"Ela: Se nós fugirmos juntos, vamos viver de quê?

"Ele: De amor."

Juro, leitores, juro.

0h46
Prêmios técnicos: direção de arte, figurino, etc. Nenhum comentário. Lembro apenas um amigo meu que, nos tempos de faculdade, fazia questão de só assistir a filmes de época por causa da direção de arte, do figurino, etc. Tudo o resto lhe era indiferente. Nunca mais o vi, é certo, mas tenho a certeza que ele adorou "Milk" (e não foi pelo figurino).

0h56
Sequência dos melhores filmes românticos de 2008. Vemos "Revolutionary Road/ Foi Apenas um Sonho", "Sexo e a Cidade", "O Leitor". Ausência inexplicável de "Elegy/Fatal", o filme de Isabel Coixet que adapta "O Animal Agonizante" de Philip Roth e onde Penélope Cruz tem o papel por que verdadeiramente mereceria o Oscar. Definitivamente, Roth não cai bem nos gostos filistinos das Academias: a de Hollywood e a outra.

1h02
Natalie Portman e Ben Stiller entregam prêmio de fotografia. Stiller surge de barba postiça, um momento de humor que arranca gargalhadas na audiência. Meu Deus, o que virá a seguir? Flatulência? Natalie Portman, que prometia tanto, dá sinais de raquitismo. A opção vegetariana não perdoa.

1h12
Momento da noite: em pequeno sketch para alegrar o auditório, dois retardados assistem a alguns dos filmes do ano e riem descontroladamente. Sobretudo com as obras mais dramáticas ("O Leitor", "Dúvida", etc.). De fato, como condenar a Academia por ignorar sucessivamente o gênero cômico quando a esmagadora maioria dos filmes a concurso já é comédia (involuntária)?

1h23
Hugh Jackman, a respeito do execrável "Mamma Mia!", proclama euforicamente que os musicais estão de volta. Não sabia que serviam bebidas alcoólicas durante a cerimônia. As pernas da cantora Beyoncé ajudam ao delírio, mas não explicam tudo.

1h33
O ator Michael Shannon é a principal razão para assistir a "Revolutionary Road/ Foi Apenas um Sonho", e Kate Winslet que me perdoe: como vizinho mentalmente instável mas com estranha lucidez existencial, Shannon reaviva a chama perdida dos grandes atores do "Método". O Oscar de melhor ator coadjuvante deveria ter ido para ele. Ao meu lado, alguém sussurra o nome de Josh Brolin, em "Milk". Discordo. Brolin já é casado com Diane Lane. Mais prêmios para quê? O vencedor é o defunto Heath Ledger em "Batman O Cavaleiro das Trevas". Não comento. A última vez que o fiz foi em coluna para a "Ilustrada" ("Adultos em pijamas", 29/7/2008) e as cartas dos leitores não pararam durante uma semana. Quero paz, gente, quero paz. Uma curiosidade, porém: a última vez que a Academia atribuiu Oscar póstumo a um ator foi em 1977, ao histriônico Peter Finch, por "Network/Rede de Intrigas", um filme estimável do sempre estimável Sidney Lumet. O grande derrotado foi o imberbe Sylvester Stallone, por "Rocky". Espera-se apenas que o futuro de Michael Shannon não seja idêntico ao de Stallone. Perder para mortos não costuma ser saudável.

1h56
Categorias técnicas: efeito especial, som, edição, etc. Aproveito o momento para meditar sobre o Oscar com olhos fechados e ronco leve.

2h13
Acordo com prêmio humanitário para Jerry Lewis. Nunca fui entusiasta do Lewis cómico, e a "intelligentsia" francesa dos "Cahiers du Cinéma" que me perdoe. Mas não esqueço o papel do homem em "O rei da comédia" (1984), filme injustamente subestimado de Martin Scorsese onde Lewis mostra o outro lado da comicidade profissional: a solidão do artista e a vulnerabilidade dele perante a admiração psicopata de fãs ou clones.

2h31
Melhor trilha sonora e melhor canção para A.R. Rahman por "Quem Quer Ser um Milionário?" Em tempos, Hollywood premiou Irving Berlin, Cole Porter ou Stephen Sondheim. Agora rende-se ao sentimentalismo primitivo e colorido de Bollywood com genuíno espírito ecumênico. O meu reino não é deste mundo.

2h41
Momento para relembrar os mortos de 2008. O ano não foi suave para Hollywood. Conhecia os desaparecimentos de Charlton Heston e Sydney Pollack. Desconhecia que Roy Scheider e o espantoso Paul Scofield estavam entre eles. Paul Newman encerra a galeria, o que faz sentido: Newman foi o último grande ator a conseguir a ponte perfeita entre a tradição clássica do cinema americano e as novas abordagens do "Método", que sacudiram a indústria em finais da década de 60. Brindo a ele.

2h50
Danny Boyle vence como melhor diretor por "Quem Quer Ser um Milionário?" Isso significa que o Oscar de melhor filme já está decidido? Cuidado. Nem sempre o Oscar de melhor diretor antecipou o Oscar de melhor filme: em 1972, Bob Fosse ganhou como melhor diretor (por "Cabaré") mas perdeu o prêmio para melhor filme (que foi para "The Godfather/ O poderoso chefão" de Francis Ford Coppola). É a minha secreta esperança.

3h02
Melhor atriz. Sou insuspeito para falar de Kristin Scott Thomas: tive a sorte de a ver no teatro em 2008 (como a caprichosa Arkadina, na peça "A Gaivota", de Tchékhov) e no filme de Philippe Claudel, "Il y a longtemps que je t'aime", a mais poderosa interpretação feminina em cinema no mesmo ano. Scott Thomas não foi indicada ao Oscar respetivo. Kate Winslet, em "O Leitor", serve de consolação.

3h12
Revelador momento: Richard Jenkins, indicado ao Oscar de melhor ator, está sentado na terceira fila, não na primeira. Verdade que Jenkins tem carreira discreta em papéis discretos (e coadjuvantes). Mas dos cinco indicados ao Oscar de melhor ator, e perante a ausência de Clint Eastwood por "Gran Torino" (a interpretação do ano), ele oferece a composição dramática mais preciosa de todas: o professor solitário em "O visitante", filme marginal de Thomas McCarthy que, por inexplicável milagre, vi num voo da TAP quando regressava de Nova York. A Academia prefere Sean Penn, por "Milk", e o ator aproveita o momento para fazer discurso a favor do casamento gay. "Não vamos envergonhar os nossos netos", diz Penn. Não precisava: a figura ridiculamente ativista de Sean Penn chega e sobra para nos envergonhar a nós.

3h23
Melhor filme. As piores expectativas confirmam-se: "Quem Quer Ser um Milionário?", um dos piores filmes dos últimos anos, é considerado o melhor filme do ano. Como explicar a rendição absoluta de Hollywood ao pior do sentimentalismo kitsch de Bollywood? Boa pergunta. Prometo responder a ela, amanhã, na coluna da "Ilustrada". Título provisório: "Hollywood: uma autópsia". Mas, por agora, chega: um homem não é de ferro.

João Pereira Coutinho é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.

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