Pensata

Vinicius Mota

27/11/2004

Dever é poder

Há uma anedota que ilustra bem como pode ser muito relativo o balanço de forças entre credor e devedor. Se eu devo R$ 100 ao banco e não posso pagar, o problema é todo meu. Terei meu crédito cortado, meu nome vai ficar sujo na praça, vão tentar seqüestrar meus bens, meu vizinho não vai mais me cumprimentar no elevador. Enfim, estou frito.

Mas, se devo R$ 100 milhões e não posso pagar, o problema é do banco. O gerente, o chefe da tesouraria e até o banqueiro vão tremer só de pensar em engolir um prejuízo desse tamanho. Vão refletir com bastante seriedade sobre renegociar o empréstimo, diminuir juros, alongar os prazos e até perdoar uma parte do papagaio. Serei recebido com cortesia na sede da instituição ou numa dessas salas de nome fresco --"private", Van Gogh, Kandinsky.

Pois boa parte do poder norte-americano se funda nesse segundo exemplo da anedota. Muitas pessoas se surpreendem quando deparam com o fato de que os EUA são a maior nação devedora do planeta. No final do ano passado, os americanos deviam ao resto do mundo US$ 2,4 trilhões (cerca de cinco vezes o valor de tudo o que o Brasil produziu em 2003). Essa dívida que mal podemos imaginar não parou de crescer neste ano. As transações comerciais dos EUA com os demais países continuam deficitárias. Americanos importam muito mais do que exportam. Mesmo recebendo juros e dividendos de suas aplicações no exterior, eles precisam tomar emprestado para arcar com essa conta.

Mas quem continua a emprestar dinheiro a um devedor que só faz aumentar o volume de seu débito? Até agora esse arranjo tem interessado ao mundo inteiro. Manter a máquina de consumo e importação dos EUA em expansão foi a salvação da lavoura da economia mundial, que vai crescer neste ano a uma média historicamente alta.

Quando a economia dos EUA fraquejou, em meados de 2000 e parecia que ia mergulhar em recessão após 11 de setembro de 2001, não apenas irromperam os seus mecanismos internos de socorro (juros em baixa, alívio de tributos e gastos do governo em alta) mas também os governos dos grandes parceiros comerciais dos EUA na Ásia entraram em ação.

Bancos Centrais como o da China, o do Japão, o da Malásia e o da Coréia do Sul trataram de aumentar bastante as suas compras de títulos da dívida pública americana. Diante da debandada dos capitais privados dos EUA, foi a saída que os asiáticos encontraram --além de fomentarem dentro de suas fronteiras a compra de dólares-- para evitar a desvalorização excessiva do dólar, o que desestimularia as exportações no sentido Ásia-EUA e as favoreceria no sentido contrário. Embora os americanos tenham feito o seu mise-en-scène de criticar especialmente a China por evitar a desvalorização do dólar, esse somatório de atitudes permitiu a recuperação da economia mundial.




Agora, porém, o estresse está de volta. A reeleição de Bush parece que tirou o mercado de divisas do compasso de espera em que ficara no segundo trimestre. A perspectiva de que seu segundo governo vai seguir gastando mais do que arrecada --entre outros motivos para manter a operação militar no Iraque e para não evitar que a atividade econômica desaqueça-- e de que a economia americana continuará a gerar enormes déficits com o resto do mundo fez acender a luz amarela.
Há algumas semanas, o dólar vem batendo sucessivos recordes de baixa em sua relação com o euro. Na semana passada, o ouro chegou ao valor mais alto em 16 anos. Isso indica que os detentores de riqueza do planeta estão se desfazendo de papéis denominados na moeda americana.

O pior foram sinalizações de que, do lado dos governos de outros países, os ativos americanos podem não encontrar o mesmo amparo que tiveram no passado. Um diretor do Banco Central da Rússia avisou que a instituição pretende rever as aplicações de suas reservas para diminuir a exposição ao dólar. E a China, respondendo a mais uma provocação do governo dos EUA para deixar a sua moeda valorizar-se, endureceu a retórica e mandou os americanos cuidarem de seus próprios problemas.




O dólar funciona para a economia mundial como uma droga poderosa. É ruim com ele, mas pode ser muito pior sem ele. Uma queda abrupta no valor da moeda americana teria, muito provavelmente, efeito no mínimo desacelerador, senão recessivo, para a economia mundial. Isso porque restaria aos EUA a ação de última instância de acelerar a alta de sua taxa de juros doméstica, para atrair capital de fora e reafirmar o valor de sua moeda, como já fizeram no final da década de 70 e início da de 80. A alta forte e rápida do juro internacional seria veneno para todo mundo, a começar das famílias americanas endividadas, que teriam de frear seu consumo para arcar com a dívida aumentada. A periferia, leia-se nós mesmos, sofreria duplamente pelo efeito do aumento de seus encargos financeiros com o exterior e pela diminuição da procura por suas exportações.




Em outros momentos na história, diante da tendência inevitável de mudança no valor relativo entre as principais moedas, os governos ricos se sentavam à mesa civilizadamente e tratavam de encontrar um meio de tentar fazer com que o movimento não fosse brusco. Mas hoje alguém que não seja um otimista doente espera que saia alguma coisa construtiva de um encontro que reúna Bush, Jintao (China), Putin, Chirac e Schröder? A acreditar nisso, muita gente preferiria, especialmente em época de Natal, investir num fundo de risco que prometesse provar a existência de Papai Noel.




Provocação

Pensando no que discutimos acima, vocês não acham que China, Rússia e EUA estão bem de mãos dadas com relação ao Iraque? Enquanto os governantes dos dois primeiros desfraldam suas críticas ao militarismo unilateralista de Washington, seus Bancos Centrais tratam de garantir financiamento para o governo americano. Compram títulos do Tesouro do Tio Sam, que, por sua vez, ajudam a financiar os marines no Iraque. Afinal, alguém precisa pagar essa conta.






A fração da intelectualidade de esquerda brasileira que não desistiu de pensar para servir ao governo ou dedicar-se a panfletagens à Michael Moore lançou, há pouco, mais um livro interessante que trata da economia política da dominação norte-americana. "O Poder Americano" (Vozes, coleção Zero à Esquerda) é organizado por José Luis Fiori e tem textos, entre outros, do próprio Fiori, de Maria da Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo. A discutir mais diretamente o histórico da hegemonia adquirida pelo dólar e a possibilidade de um colapso da moeda americana (que o autor considera pequena no curto prazo), recomendo o texto de Franklin Serrano.

Primeiro erro

Quem leu minha coluna de estréia em suas primeiras horas de vida, até o meio da tarde da segunda-feira passada (22/11), merece um pedido de desculpas. Ninguém, até onde pude apurar, ainda foi capaz de estabelecer com precisão o que ocorreu com o cadáver de Evita logo após ter sido seqüestrado da sede da Confederação Geral do Trabalho, no final de 1955, e por que etapas passou até ser enterrado disfarçadamente em Milão. A versão contida no livro "Santa Evita", do escritor argentino Tomás Eloy Martínez, é fictícia, como ele próprio disse em entrevista à revista "Veja". Pior para o Clarín, o maior jornal argentino, que tomou como fato a versão, e para mim, que acreditei no Clarín. Vão meus agradecimentos aos leitores Cleber Jacob e Solange Funchal, que prontamente me alertaram para o erro, que foi corrigido rapidamente.

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    Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

    E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

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