Pensata

Vinicius Mota

22/01/2006

Cartas chilenas

O Chile é um caso notável de desenvolvimento na América Latina. Digo isso porque, ao leitor que acompanhou a minha última coluna ("Pane nos modelos"), pode ter ficado a impressão de que eu negava ou minimizava esse fato. O que criticava era a mania da vanguarda financista global de pensar a história e o desenvolvimento econômicos a partir de um esquema simplista e binário.

É comum que uma idéia depurada da economia chilena acompanhe as monótonas pregações ideológicas dessa vertente liberal. Em tais ladainhas, o Chile surge sempre como o caminho a seguir pelos outros países da região. As piores maldições são lançadas aos que se desviam da boa rota --a Argentina, sob Menem e Cavallo, já chegou a ostentar status parecido, mas caiu em desgraça.

Foi quase insuportável acompanhar mais uma semana dessa pregação, aqui no Brasil, a pretexto da eleição da socialista Michelle Bachelet para a Presidência chilena na semana passada.

Que o vigor chileno esteja associado a uma rara convergência de práticas apregoadas pelos liberais de ontem e de hoje, não resta dúvida. Daí não segue que seu desenvolvimento se resuma a isso nem que possa ser decantado sem mais numa cartilha dogmática a ser exportada.

Fatos básicos

O Chile é um país pequeno. Sua população, de 16 milhões de habitantes, menor que a da Grande São Paulo (19 milhões), não chega a um décimo da brasileira. A economia chilena, que produziu o equivalente a US$ 100 bilhões em 2005, também é de tamanho modesto se comparada à do Brasil (US$ 600 bilhões).

O país de Bachelet está deitado num berço esplêndido de cobre. Estima-se que em seu território, cuja área não chega a 10% da do Brasil, esteja um quarto de todas a reservas mundiais desse metal que tem múltiplos usos e demanda assegurada até onde a vista alcança. O desafio econômico básico da sociedade chilena, portanto, era o de organizar-se em torno dessa grande riqueza mineral.

Pode parecer, mas essa não é uma tarefa fácil. Países muito dependentes do que extraem do subsolo em geral têm dificuldades para erigir um modelo eficiente de desenvolvimento a partir daí. Há até um termo clássico na literatura econômica, "Dutch disease" ("doença holandesa"), para descrever tal paradoxo: essas nações tendem a acumular saldos de comércio que forçam a valorização de suas moedas, o que faz atrofiar a indústria doméstica.

Pois o Chile conseguiu vencer de forma muito satisfatória o desafio. Para tanto, se vale de um sistema de controle estatal da produção do cobre (o que significa poder de influir na formação do preço internacional do metal) e de estabilizadores macroeconômicos que atuam como um contrapeso às variações nas cotações da commodity.

A estatal Codelco, criada pelo ditador Augusto Pinochet em 1976, detém cerca de 20% das reservas mundiais de cobre. Um sistema muito inteligente de taxação da atividade mineradora faz aumentar proporcionalmente mais as receitas fiscais em momentos de alta demanda mundial pelo cobre.

A Codelco pagou ao Fisco US$ 326 milhões em 2002, ano que marcou o fundo do poço do processo de depressão no preço das commodities iniciado no final de 1997, após a crise asiátia. Em 2004, apenas dois anos depois mas já no ambiente de explosiva retomada do preço dos metais, a estatal recolheu dez vezes mais ao governo, enquanto a sua produção de cobre cresceu apenas 13% no período.

Fatores de estabilização

Os saldos do cobre em tempos de bonança não se transformam em gasto público adicional na mesma proporção. Nesses períodos, o Estado poupa. O resultado fiscal (arrecadação deduzida dos gastos) do governo central chileno passou de um déficit de 0,4% do PIB em 2003 a um superávit de 2,2% do PIB no ano seguinte, saldo que foi incrementado ainda mais (3,4% do PIB) em 2005.

A poupança pública em tempos favoráveis abate a dívida do governo e dá fôlego para que gaste mais do que arrecada nos ciclos de baixa do preço do metal. A acumulação de reservas internacionais --e, até há pouco, a taxação punitiva dos capitais estrangeiros em aplicações de curto prazo-- contém a valorização do peso, efeito adverso da acumulação de saldos comerciais.

É um engenhoso mecanismo de seguro da economia chilena --isto é, do emprego e da renda dos cidadãos-- contra flutuações abruptas a que ela está sujeita, literalmente, por natureza.

Talvez pelo fato de a população chilena ser pequena se comparada à sua pujança mineral --e a outras vantagens que o país desenvolveu no setor primário-exportador, como a pesca--, o Chile tem podido prescindir de uma estrutura industrial complexa. A atividade manufatureira está basicamente acoplada ao parque exportador de recursos naturais.

De acordo com dados da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em 2004 mais de 90% das exportações chilenas se resumiram a produtos primários (38,3%) e a bens industrializados "baseados em recursos naturais" (52,4%). O complexo do cobre responde por cerca de 40% de tudo o que os chilenos vendem ao exterior. Mais de 60% de sua pauta exportadora se concentra em dez produtos, todos com baixo índice de manufatura.

Já mais de 60% do que o país importou em 2004 eram produtos industrializados de tecnologia alta (11,9%), média (34,3%) e baixa (14,5%). Por isso o Chile está muito confortável com o altíssimo grau de abertura de sua economia ao exterior. Sua corrente de comércio (a soma de tudo o que importa com o total do que exporta) está perto dos 60% do PIB, índice que é quase o dobro do brasileiro. A média de suas tarifas de importação de mercadorias é de 2%, uma das mais baixas do planeta. E o país tem interesse e vocação para ampliar ainda mais as suas relações comerciais e financeiras com o resto do mundo. O alto grau de abertura do comércio também é um vetor que faz convergirem a inflação doméstica e a internacional.

Problemas

Com esse arranjo, e num contexto em que o cobre figura como um dos insumos básicos para países (China, EUA, Índia) e atividades (a economia da informação) em ritmo forte e duradouro de expansão, o Chile tem crescido muito mais que seus vizinhos. Nos últimos dez anos (1996 a 2005), sua economia se expandiu à média anual de 4,2%, contra os 2,8% da América Latina e os 2,2% do Brasil.

Nessa toada, o PIB acelerado e a política fiscal levaram a dívida do governo (10,9% do PIB em 2004) e sua despesa com juros (4,4% de tudo o que arrecada em impostos) a níveis irrisórios. Os juros (a taxa básica está hoje em 4,5% ao ano após sucessivas elevações desde novembro de 2004), a inflação (3,7% em 2005) e a carga tributária (24% do PIB em 2004) em níveis bastante baixos favorecem o consumo das famílias e a atividade empresarial.

Um dos problemas importantes do desenvolvimento chileno é que, apesar de ter obtido os maiores níveis de renda per capita e os menores de pobreza (13% dos chilenos eram pobres, no critério da Cepal, em 2004) e indigência (menos de 5%) da América Latina, continua a ser um país com alto grau de concentração de renda mesmo para os critérios da região. Em 2002, era a sétima nação latino-americana com pior distribuição de renda (medida pelo índice de Gini). E o comportamento desse indicador ao longo do tempo mostra que os anos de forte crescimento econômico não beneficiaram a desconcentração dos rendimentos.

Outro fator de risco é a excessiva dependência do Chile do cobre. A descoberta de um sucedâneo competitivo do metal no futuro pode fazer tudo ruir rapidamente. Atento a essa fraqueza, o governo Ricardo Lagos, em março do ano passado, criou um fundo de desenvolvimento tecnológico constituído por uma nova taxação do cobre --algo como os fundos setoriais instalados no Brasil sob FHC, mas frustrados pela restrição fiscal do Estado. A idéia do Chile é aumentar o pífio 0,7% do PIB ao ano que investe em pesquisa e desenvolvimento e fazer com que o país encontre algum nicho próprio na revolução tecnológica global em curso. Diferentemente do que ocorre por aqui, lá os recursos para pesquisas sobre inovações devem fluir com regularidade, mas, mesmo assim, até pela carência de escala do país, os resultados do novo programa são incertos.

A festejada Previdência chilena também é algo que vai exigir atenção crescente dos governantes do país. Além de a transição do regime antigo para o novo, privatizado sob Pinochet, ter gerado esqueletos fiscais que vão pipocar mais cedo ou mais tarde, o fato de o sistema não atingir metade dos trabalhadores faz prever uma crescente pressão no sentido de que o Estado aumente progressivamente o gasto com assistência social.

Tudo somado, mesmo o pequeno Chile é bem mais complexo do que a propaganda liberalóide faz crer. Conjuga muita atuação estatal e muita livre iniciativa. E o faz a seu modo, de acordo com suas especificidades históricas e políticas. Com sucesso. Mas esqueçamos essa bobagem de acreditar em fórmulas vazias do tipo "O que é bom para o Chile é bom para o Brasil". Um pouco menos de ideologia, por favor.
Vinicius Mota, 33, é editor de Opinião da Folha (coordenador dos editoriais). Foi também editor do caderno Mundo e secretário-assistente de Redação da Folha. Escreve para a Folha Online aos domingos.

E-mail: vinicius.mota@folha.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca