Pensata

Sylvia Colombo

03/11/2006

De quem é a História?

Na semana passada, fiz uma entrevista com o escritor e jornalista gaúcho Eduardo Bueno, mais conhecido entre seus pares como Peninha --por causa do personagem de Walt Disney. A matéria foi capa da Ilustrada no último sábado (link só para assinantes).

Historiador diletante, mas bastante aplicado, Peninha teve a oportuna idéia de escrever livros sobre a história do Brasil na época das comemorações dos 500 anos deste país, em 2000. O sucesso foi imediato. A coisa se desdobrou em outros volumes (que compõem a série "Terra Brasilis") que, até hoje, já venderam, juntos, mais de meio milhão de exemplares --número que praticamente nenhum livro de historiador "sério", digo, ligado à academia, logra conseguir nos dias de hoje. Por que? Bem, Bueno apostou num gênero, o "thriller histórico", que é envolvente e sedutor. Narra a história de forma pontual e não se arrisca a grandes interpretações, optando por um formato de folhetim, cheio de suspense, com heróis e bandidos, mas que jamais adota o modo ficcional. O que faz não é, nem deve ser confundido com, romance histórico. A obsessão com relação aos detalhes o leva a consultar ampla e variada documentação, sem promover recortes ideológicos.

Agora, Peninha está de volta, lançando um livro que narra o colapso do projeto da coroa portuguesa, no século 16, de "privatizar" a colonização brasileira por meio das chamadas Capitanias Hereditárias. Assim como os outros, este desponta já como potencial sucesso de vendas.

A idéia de termos um escritor apaixonado pelas tramas da nossa história, que democratize o conhecimento e estimule a curiosidade das pessoas com relação ao que se passou está coberta de méritos. Mas há um pequeno problema. Sua recusa em dialogar com as correntes historiográficas sobre o período de que trata o leva a formular correlações anacrônicas. Neste "A Coroa, a Cruz e a Espada" (ed. Objetiva), por exemplo, o escritor, ao descrever o modo como a coroa portuguesa implementou o Governo Geral no Brasil, se deixou levar pela idéia de que os colonizadores e o aparelho de Estado que trouxeram teriam vindo apenas cheios de vícios e imperfeições e que, por isso, teria tido início uma longa tradição de corrupção nos nossos governos ...até hoje (!!) Assim, oportunamente mais uma vez, Peninha acabou pegando carona no noticiário da atualidade. A saber, os escândalos de corrupção do governo Lula, que automaticamente acabaram virando propaganda do seu produto.

Ora, essa associação simplória simplesmente não tem cabimento. A própria idéia de que o passado monárquico tenha sido responsável pela nossa situação atual, inoculando por aqui alguma espécie de vírus ou jogando sobre nosso território algum tipo de maldição eterna está cada vez mais sendo descartada pelos estudiosos do assunto. Enquanto isso, na contramão da historiografia, Peninha ainda pinta Portugal apenas como um ninho de gente preguiçosa, leniente e corrupta. Além disso, o escritor passa por cima do fato de que se tratava de uma potência capaz de empreendimentos marítimos impressionantes (Brasil, África, Índia e Oriente). As propostas políticas de Portugal, ainda que pareçam, hoje, atrasadas, estavam em consonância com as idéias e debates de seu tempo.

Assim, o impacto dos livros de Bueno sobre o público surge como uma faca de dois gumes. Por um lado, sem dúvida que é positivo que sua obra exista, e que ele transforme sua legítima e entusiasmada curiosidade num instrumento que "facilite" e explique a história para leigos (e também para um montão de não tão leigos assim...). Por outro, seu entusiasmo às vezes passa por cima de questões que, de algum modo, merecem mais reflexão.

O caso de Peninha, por quem tenho simpatia pessoal e profissional apesar das ressalvas, é um bom alerta para o que certamente veremos acontecer nos próximos dois anos. Aproximam-se as comemorações dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil. Será uma bela oportunidade para o mercado editorial, acadêmicos e oportunistas (além de acadêmicos oportunistas) tentarem encher prateleiras com lançamentos sobre o tema, ganharem páginas de cadernos culturais e espaço autopromocional nas TVs com teses as mais variadas sobre o que "de fato" representou o desembarque dos portugueses no Rio de Janeiro, em 7 de março de 1808.

Além de, é claro, novas e incríveis revelações que, "casualmente" neste período, virão à tona.

O certo é que ninguém tem o monopólio da história, nem a academia nem os diletantes. O que não pode é faltar aos que compram e lêem livros de história discernimento e curiosidade crítica. Mas isso não deve ser cobrado de Bueno. Nem de ninguém. Cada um que cultive a sua.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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