Pensata

Sylvia Colombo

09/02/2007

Bang Bang

Não é de hoje que os seriados televisivos norte-americanos andam roubando espaço do cinema tanto no que diz respeito à qualidade artística como ao fato de abordarem questões contemporâneas de forma mais direta e, muitas vezes, mais eficaz que Hollywood ou outras produções independentes.

A chegada recente de dramas históricos ao espaço de entretenimento da telinha é apenas mais uma prova da vitória paulatina desse formato. "Roma", produção conjunta da HBO norte-americana com a BBC britânica (a primeira temporada já foi exibida aqui e lançada em DVD), por exemplo, tem conseguido mesclar, numa dose adequada, o vigor do entretenimento ao rigor histórico -cometendo só o que, por enquanto, podem ser considerados pequenos escorregões. De um modo geral, o que a série traz de ficcional é algo cuidadosamente cotejado com a documentação sobre o período e amparado pelo trabalho de pesquisa de uma verdadeira junta de especialistas na área. E essa impressão de verossimilhança, certamente, é um dos ingredientes que explicam o sucesso da série (assinantes podem ler mais aqui). Nos EUA e na Europa, ela já avança em sua segunda fase, no momento da história de Roma em que Julio Cesar sai de cena e Marco Antonio e Otaviano estão em disputa aberta.


Divulgação
Cena de "Deadwood", sobre o Velho Oeste
Cena de "Deadwood", sobre o Velho Oeste
Menos comentado por aqui, mas tão interessante quanto "Roma" para quem se liga em reconstruções e caracterizações de época, é "Deadwood", cuja segunda temporada acaba de sair em DVD. O seriado se passa nos Estados Unidos de finais do século 19, quando o vilarejo homônimo, recém-formado em território ainda de predominância indígena e hostil para o homem branco, em Dakota, começa a ganhar os contornos de uma típica cidade norte-americana, durante a famosa corrida do ouro.

Assim como "Roma", o faroeste também mistura personagens ficcionais a históricos (e legendários) e faz dos jogos de poder seu principal tema. A ação começa em 1876, quando a região vira foco da atenção e aventureiros em busca de suas ainda inexploradas minas. Em torno delas, forma-se um acampamento em que os primeiros estabelecimentos são, significativamente, um bordel, barracas que vendem ferramentas e doses de uísque e um hotel que, não raro, vê os dias amanhecerem com o chão dos seus quartos manchado de sangue. Qualquer insinuação sobre quais teriam sido os pilares fundadores da economia dos EUA não é pura coincidência...

O dono do dito prostíbulo, o Gem Saloon, é Al Swearengen, um inglês que veio para a América fazer fortuna e que controla boa parte dos negócios lícitos --compra e venda de lotes, cessão de terras e minas-- e ilícitos --tráfico de ópio, mortes por vingança ou por simples conveniência "empresarial"-- do local. Longe de figurar apenas como o vilão da história, o personagem pretende ser um resumo dos desejos e da violência que habitavam os corações daquele grupo de homens. Seu olhar irônico não perdoa uma mosca e ele está sempre deixando bem claro, da forma mais desavergonhada possível, que o que realmente lhe interessa é fazer fortuna e conservar suas propriedades a qualquer custo. Sempre pronto a enfrentar o pior que há na alma de bandidos bêbados, concorrentes desleais, assassinos de aluguel ou aproveitadores em geral, Swearengen, interpretado pelo excelente Ian McShane, também saca da algibeira as melhores piadas (ao estilo britânico) e observações sobre para onde caminha a tal América que ele está vendo nascer.

Num dos episódios, por exemplo, em que assiste ao levantamento dos primeiros postes telegráficos de "Deadwood", ele se pergunta porque alguns consideram "progresso" um sistema que vai apenas apressar as palavras de tristeza que sempre chegaram devagarinho por meio das velhas cartas. E fica em dúvida se deve ou não colocá-los pra baixo. Só não o faz porque se distrai com outro assunto. Quando o vilarejo é tomado por uma epidemia, então, ele faz questão de reunir doações para construir um hospital improvisado, mas não por caridade, obviamente, mas para depois ameaçar de morte o responsável pelo jornal local se ele não imprimir em letras grandes a notícia de que é ele quem está distribuindo auxílio à população.

A relação de Swearengen com suas prostitutas, então, é uma atração à parte. Cruel até os cabelos com as moças, por outro lado é só quando elas estão prestando-lhe algum "favor sexual" que ele consegue elaborar suas estratégias e discursos políticos. Observador atento das taras dos locais, seus comentários pornográficos são a coisa mais engraçada do programa. Entre os clientes do seu bordel, por exemplo, há um sujeito que sempre entra no quarto com três prostitutas ao mesmo tempo, mas uma única reivindicação: lamber os três pares de seios e ir para casa sorrateiramente, sem falar nada. "Algo que vocês precisam saber sobre os especialistas, eles sempre estão dispostos a pagar mais, e nunca causam arruaça", sentencia.

Seu principal desafeto é o xerife Seth Bullock, um sujeito que é metido a justiceiro mas não consegue lidar sequer com as próprias fraquezas. Entre os personagens principais, ainda, estão o médico local, doctor Cochran, que, para exercer sua função tem de ficar de bico calado sobre as atrocidades que presencia; Calamity Jane, uma pistoleira machona que vive bêbada, Sol Star, comerciante judeu aliado de Bullock; Trixie, a prostituta rebelde; Alma Garret, a viúva de um milionário enganado e morto numa emboscada; Cy Tolliver, o antipático concorrente de Swearengen, e Joanie Stubbs, uma ex-meretriz que, ao entrar também para o ramo dos bordéis, desequilibra a economia e o tabuleiro de influências locais.

À medida que cresce, Deadwood passa, obviamente, a chamar a atenção de Washington. Com isso, aumenta a pressão para que o vilarejo se transforme em uma unidade administrativa e se incorpore à nação (e, conseqüentemente, comece a pagar impostos). Swearengen, que logo vê aí uma ameaça a seu poder e a seus bens, começa a mobilização. Convoca os comerciantes que estão sob seu jugo e anuncia: "Vamos formar um governo". O surto democrático, entretanto, não tem outra intenção do que a de organizar o suborno coletivo dos enviados da capital, é claro. Os cargos, então, são escolhidos de forma randômica, e já se sabe de início que serão todos de fachada e temporários, até que as autoridades sejam devidamente dribladas.

Só que, por mais que tente, Swearengen não consegue deter o tempo --e nem o avanço da democracia americana-- e suas tentativas de contê-los em nome de seus interesses vai criando situações tragicômicas.

Começam a surgir bancos, o cemitério cresce, mais e mais prostitutas desembarcam atraídas pela fama do local, assim como aventureiros que ali despencam para montar pequenos empreendimentos e estabelecer-se. Não demora muito tempo, pois, e eleições de verdade, pela força dos acontecimentos, acabam sendo anunciadas. Se isso é uma boa ou uma má notícia, isso ainda não sabemos. E é justamente neste ponto que "Deadwood" quer chegar.

Em "Roma", vemos a ascensão e o fim de Cesar a partir dos olhos de um soldado (Titus Pullo). Por conta disso, o poder está sempre distanciado afetivamente do espectador e uma separação entre ricos e pobres, poderosos e oprimidos, de algum modo se impõe. Em "Deadwood", por outro lado, somos levados a ver o mundo do alto da sacada do saloon de Swearengen, como se fôssemos, como ele, proprietários de meretrizes e chefes de capangas cegos pela idéia de enriquecer e satisfazer seus humanos desejos. Se não chegamos a torcer pelos bandidos em vez dos mocinhos, até porque já não existe essa divisão clássica, vamos nos acostumando a ver uma "América" nascendo de um surto de ambições no meio de muita, mas muita, lama.
Sylvia Colombo, 35, é repórter da Ilustrada, onde escreve sobre livros, cinema e música. Formada em história pela USP e jornalismo pela PUC-SP, foi editora de Especiais, Folhateen e Folhinha, e correspondente em Londres. Escreve às sextas.

E-mail: scolombo@folhasp.com.br

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