Pensata

Alcino Leite Neto

23/05/2004

Nossa Senhora no meio da guerra religiosa

Um concurso está sendo promovido para escolher uma nova coroa para Nossa Senhora Aparecida. Neste ano, faz um século que a imagem encontrada nas águas do rio Paraíba, no interior de São Paulo, teve sua coroação autorizada pelo papa Pio 10.

O concurso segue até 30 de maio. Os fiéis podem votar na Basílica em Aparecida ou pela internet (http://www.santuarionacional.com.br). São cinco os projetos concorrentes. O resultado do gosto popular representará apenas 1 voto na hora do julgamento oficial, por "experts" e membros da Igreja.

A coroa atual, que será reservada para ocasiões especiais, foi um presente da princesa Isabel, quando o Brasil já não era mais uma monarquia. Não deve ter sido apenas coincidência ou fervor religioso o que levou Isabel, a mesma princesa que assinou a libertação dos escravos, a patrocinar a coroa da Padroeira do Brasil.

Nossa Senhora Aparecida (nome extraordinário) é representada com uma negra. Na lenda, a imagem de terracota, que seria de coloração clara, ficou escurecida por causa do tempo em que passou no fundo do rio, coberta de lodo. Poderia ter sido clareada, mas não foi --e tornou-se por fim essa Virgem negra, cuja cor não incomoda a ninguém, tanto mais que são frequentes santos escuros nas igrejas barrocas do Brasil.

Nas lojas de Aparecida, dentro e fora da Basílica, a imagem da Virgem é, naturalmente, o principal produto à venda. Os tamanhos e os materiais utilizados na confecção do ícone variam muito, mas a tez preta é imutável, em alguns casos pretíssima.

Uma imagem de 90 cm de altura custa em média R$ 700, com manto e coroa. Indagada se existe tamanho maior do que este, a balconista responde: "Claro, de 1 metro e 25 centímetros, muito bem feita, uma morena linda, linda!".

Mas por que não uma negra linda, linda? Coisas do Brasil e de nosso racismo particular.

Aparecida, a duas horas de São Paulo, é uma cidade horrorosa. O simples fato de visitá-la, mesmo que não se vá à Basílica, equivale a pagar uma pesada promessa. Deve estar ali a maior concentração de hotéis por metro quadro do país. Como cidade, parece servir apenas de dormitório para os peregrinos --é um apêndice parasita à Basílica. Tudo em Aparecida tem aspecto provisório e improvisado, e uma tristeza sem par transita por aquelas ruas sem personalidade.

Cerca de 5 milhões de pessoas visitam a Basílica anualmente, e boa parte delas dão uma passada na cidade. No Dia das Mães, previa-se que 100 mil romeiros invadiriam Aparecida. Em domingos normais, o número de peregrinos gravita em torno de 15 mil.

A igreja velha, de estilo neobarroco, construída com a riqueza do café no Vale do Paraíba e concluída em 1888, continua sendo frequentada piamente no centro da cidade. Mas está de tal modo deteriorada e abandonada que inspira aos mais sensíveis muito mais um sentimento de morbidez do que de milagre e alegria, o que talvez fosse mais condizente com o culto da Virgem.

É como se a própria Igreja Católica tivesse abandonado o templo como um traste velho ao mudar a sede do culto na década de 80 para uma mansão portentosa: a Basílica, construída ao longo de quase 25 anos, numa área de 23.000 m2 e capaz de abrigar 70 mil pessoas na parte interna.

O tamanho impressiona, mas do ponto de vista arquitetônico e decorativo a Basílica é uma construção sem grandes vôos criativos, discreta e equilibrada, sem ostentação, para atender pragmaticamente os peregrinos na época do turismo de massa. Daí o seu aspecto funcional com algo, ao mesmo tempo, de shopping e de rodoviária (ou parada de estrada) --modelo que vem sendo copiado, mas com arroubos ultrakitschs, pelos neopentecostais nos templos gigantescos que estão erguendo nas grandes cidades.

O passeio por essa Basílica contemporânea é incrivelmente monótono, apesar das centenas de TVs que reproduzem a missa em todo canto, e suscita, com melancolia, o pensamento de que a decadência da Igreja Católica no Ocidente vai par a par com a crise de seu gosto estético.

Fato que atinge não apenas a qualidade da arquitetura dos novos templos, mas também das novas pinturas e esculturas que decoram suas paredes e da música que é neles cantada --tudo de quinta categoria.

A arte moderna, majoritariamente pagã ou atéia, deixou ao desabrigo o catolicismo. No Museu do Vaticano, depois de atravessarmos dezenas de alas em que a fé católica está associada à mais alta sensibilidade artística de cada época, da era medieval até o século 19, nos deparamos com a parte moderna e contemporânea da arte religiosa no museu: um lixo do começo ao fim.

Na Basílica de Aparecida não se pode falar em lixo artístico --trata-se de uma outra coisa. É um espaço não-aristocrático, um templo em perfeita conformidade com a temperatura pequeno-burguesa da Igreja atual. Esta mesma que, embora mantendo muito de sua autoridade moral, perdeu inteiramente a capacidade de impor de cima para baixo um gosto mais sofisticado, que talvez nem ela mesma ainda tenha, e precisa se adequar às demandas da cultura (religiosa) de massas.

O museu medíocre da Basílica não merece ser visitado, mas ninguém que passe pelas redondezas deve deixar de ver a Sala das Promessas --uma das coleções mais impressionantes do Brasil.

Um curador muito delirante deve ter concebido esta sala, onde foram reunidos em ordem ex-votos e lembranças de peregrinos. O teto da vasta galeria é todo ele coberto por milhares de fotos dos romeiros, como um colossal álbum de família. Numa vitrine, acumulam-se pacotes de cigarros; em outra, garrafas de pinga; em outra, ainda, fichas de jogos e baralhos --tudo deixado por gente que deixou de fumar, de beber e de jogar.

Há mais coisas: centenas de jóias e relógios deixados em doação, instrumentos musicais, armas de fogo, cruzes de todo tipo, cartas e bilhetes, sem falar nas lembranças dos estrangeiros, como bandeiras, e nos vários barcos de pescadores. É um acúmulo aberrante de coisas, como se organizássemos um depósito de lixo vastíssimo ou uma casa de penhores.

Sem falar, claro, nos asquerosos ex-votos confeccionados com parafina ou madeira, imitando cabeças, pernas, úteros, ovários, nariz, seios, e deixados ali em agradecimento por alguma cura.

As reproduções de partes do corpo humano em parafina podem ser compradas perto da Sala das Promessas, por um preço módico, numa lojinha. O seio duplo custa R$ 2,50. O simples, R$ 2,00. Uma cabeça grande não passa de R$ 5,00. Uma perna chega a R$ 6,00.

O romeiro entrega o objeto numa recepção --e está paga a promessa. Infelizmente, como a Sala das Promessas está cheia e completa (é um espaço expositivo que pouco se renova), as reproduções em parafina serão derretidas e servirão para outras reproduções, e assim por diante. Os objetos em ouro e prata serão guardados num cofre ou vendidos, as cartas arquivadas por um tempo, as roupas que prestarem serão lavadas e expostas num brechó de caridade --as outras serão queimadas, conta a recepcionista.

Eu disse que o museu da Basílica não vale uma visita. Mas agora me recordo de um motivo para ir até lá. É a parte da exposição que lembra o dia 16 de maio de 1978, quando um "jovem protestante" (assim ele está descrito) destruiu a imagem de Nossa Senhora, atirando nela uma pedra.

A própria pedra gorda está exposta no local, como uma anti-relíquia, numa redoma de vidro. As fotos exibem a Virgem em mil fragmentos, no chão da antiga igreja, e contam a história da restauração, feita no Masp. É curioso ver a imagem repetir a condição fragmentária de sua origem --pois ela foi encontrada em pedaços por três pescadores diferentes, em 1717.

É por causa de ameaças desse tipo que a imagem agora está protegida por um vidro blindado na Basílica nova, parecido ao que guarda a Mona Lisa no Louvre. Os fiéis passam em fila diante de Nossa Senhora, vigiados por dois seguranças --um aparato que não impediu, porém, que neste ano um outro "protestante" arremessasse uma lata na imagem.

Deve ter razão a Igreja ao proteger tanto a imagem e zelar pela difusão do culto da Virgem, seja promovendo um concurso para escolher a nova coroa, seja trazendo uma réplica de Nossa Senhora de Fátima (Portugal) para peregrinar nestes dias pelo país, seja fazendo a Mãe de Deus protagonizar os filmes do padre Marcelo --são formas de popularizá-la ainda mais, nesse momento crítico por que passa a Igreja Católica no Brasil.

Foi um bispo da igreja Universal de Deus que um dia chutou na televisão uma imagem da Virgem, exibindo em rede nacional a aversão que esses credos têm pela iconografia milenar dos católicos --aversão que nunca fôra exposta tão crua e abertamente no país. Não é difícil ver nesse grotesco episódio um paradoxo contemporâneo: embora eles adorem se apresentar na televisão, os "universalistas" detestam o culto das imagens.

A Virgem permanece uma pedra-de-toque da difusão do catolicismo, mas é ao mesmo tempo o calcanhar de aquiles da Igreja na sua disputa por fiéis no Brasil, onde os neopentecostalistas avançam a passos largos.

Toda a disputa religiosa que haverá no país nos próximos anos passará necessariamente pela questão do culto à Virgem --e, no Brasil, à Nossa Senhora Aparecida: de um lado, a Igreja tentando renovar e modernizar esse culto; de outro, os neopentecostais tentando lançar a imagem de volta ao lodo do rio.

É difícil prever quem ganhará a guerra. Mas certamente alguma coisa já deve estar ocorrendo no país, neste momento em que a Virgem, em particular esta Nossa Senhora, negra e Aparecida, um mito católico-brasileiro com tantos significados sociais, raciais e psicológicos, vai deixando de ser o culto hegemônico que foi durante séculos.

Miséria da crítica de cinema

A crer numa boa parte da crítica brasileira de cinema, não houve nada que prestasse no Festival de Cannes deste ano, exceto o filme de Walter Salles, "Diários da Motocicleta", que afinal nada ganhou na competição.

Ainda bem que o júri de Cannes, liderado por Quentin Tarantino, soube destacar alguns relevantes diretores do resto do mundo, sobretudo o tailandês Apichatpong Weerasethakul, que ganhou o Prêmio Especial, com "Tropical Malady" (Doença Tropical).

Weerasethakul é o autor do maravilhoso "Blissfully Yours", a história de um momento de amor entre um imigrante da Birmânia e uma mocinha tailandesa. O filme, que nunca estreou em circuito comercial no Brasil, é uma dádiva do Oriente ao cinema (caso queira ler mais sobre esse filme: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult682u64.shtml).

Entediada, sem curiosidade nem sensibilidade, carregada de preconceitos, uma boa parte da crítica brasileira mainstream que esteve em Cannes não fez mais que registrar em seus comentários impressões preguiçosas, fúteis e que atentavam mais para a reação "da platéia" e dos demais órgãos de imprensa estrangeiros do que para os próprios filmes.

Deve ser por isso que o cinema brasileiro vai tão bem, com tanto lixo consagrado nas telas.

Intervalo

Por motivo de viagem, esta coluna só retorna em julho.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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