Pensata

Antonio Carlos de Faria

05/12/2002

A pescaria como método

"Um homem percebe que está ficando velho quando vendedores e balconistas passam a chamá-lo de senhor. A confirmação irreversível acontece no momento em que alguém lhe oferece o lugar para sentar. Entre esses dois estágios fundamentais da vida, há obstáculos a vencer, caso se queira chegar ao destino final com dignidade".

Essas são as primeiras linhas do livro que está sendo escrito pelo dono daquele botequim em Copacabana (ver "Um biquíni não faz verão"). O gajo resolveu enfrentar o desafio ao se admirar com a façanha de um vizinho ilustre, eleito neste ano para a Academia Brasileira de Letras.

O novo autor espera que sua obra seja mais um sucesso da literatura de auto-ajuda, que ele define pragmaticamente como a que ajuda a vender a si mesma.

Embora inacabado, o livro já ganhou o título de "A Arte de Envelhecer". Alertado de que este nome poderia soar como plágio do clássico "Saber Envelhecer", de Cícero, ele argumentou que dificilmente os descendentes do filósofo romano irão reclamar.

Como estratégia de divulgação, o novo autor permite aos freqüentadores do botequim a leitura de excertos de sua obra. Eis alguns que ele mesmo selecionou:

"Outros sinais freqüentes do envelhecimento são a compulsão por entrar em bingos ou por fazer cursos com um sommelier. A primeira modalidade denota um desalento em relação a riscos mais prazerosos. A segunda pode terminar reduzida a um refinamento pedante, alcançável por meios menos onerosos - como a leitura de livros de auto-ajuda.

Porém, entre os homens, o sinal mais alarmante de envelhecimento é o repentino interesse por mulheres vinte anos mais novas, o que geralmente não ocorre com os freqüentadores de bingo, mas pode afetar ainda mais os orçamentos dos amantes dos vinhos.

Como vemos, envelhecer com dignidade é uma arte. Um passo seguro nessa trilha de incertezas é aprender a pescar.

A pescaria é a mais primitiva das formas desenvolvidas pelo homem para passar o tempo e sua prática não é incompatível com outros vícios ociosos - como a leitura de crônicas.

Mas é necessário que se pratique (a pescaria) com vara e molinete - as outras modalidades exigem mais trabalho e podem desviar o iniciando de seu verdadeiro objetivo.

Note-se que a finalidade da pesca não é absolutamente fisgar o peixe, mas gozar o prazer da solidão, algo próximo da não-existência, o verdadeiro desejo da vida.

Pode ser que haja alguma incompatibilidade entre o iniciando na arte de envelhecer e a pescaria. Neste caso, deve-se procurar outro meio para se alcançar as revelações holísticas - vale até mesmo uma ida ao bingo, ou torrar o orçamento com aquela jovem que ficou encantada com seus conhecimentos de enologia.

As únicas coisas a se evitar são a carreira literária e escrever obras de auto-ajuda. Muita concorrência atrapalha o mercado. Há outros motivos obscuros, além desse. Para desvendá-los basta comprar nossos próximos livros."
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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