São Paulo, sábado, 1 de janeiro de 1994
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O mundo acabou ontem

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Numa época em que havia mais jornais e revistas, e em que eu botava a banca de pessimista profissional, fizeram uma enquete para ser publicada no primeiro dia do ano. A pergunta fundamental era: "Qual a manchete que gostaria de ver nos jornais de amanhã?". Sendo um dos editores do jornal, tive acesso às respostas que outros jornalistas e escritores haviam dado. Disparado, ganhava a manchete: "Reina paz em todo o mundo". Havia então algumas guerras localizadas e a competição entre Estados Unidos e União Soviética vivia um dos momentos mais críticos.
Outras manchetes também apareciam com frequência: "Descoberta a cura do câncer!" (numa época em que ainda não havia Aids) vinha em segundo lugar, seguida por outras menos votadas: "Ninguém morrerá mais de fome!", "A terra dará para todos!", "Todos os homens são iguais!" e "O Brasil venceu o subdesenvolvimento!".
A turma comprometida com as artes e a cultura distribuiu-se em manchetes que iam da vitória definitiva do Cinema Novo no mercado internacional ao barateamento dos ingressos para os espetáculos teatrais. Um livreiro agiu por conta própria e bradou como Castro Alves: "Livros, livros a mancheias!" (Não tenho certeza sobre o verso, talvez esteja errado mas o sentido é esse).
Sendo o último a sugerir a manchete e vivendo (como já disse) a fase mais sincera de pessimista profissional, eu precisava resumir no máximo de 48 batidas a negação das sugestões apresentadas. Bolei a frase e como era o último a mexer na matéria, ninguém a vetou ou a atenuou. Foi essa a manchete que eu gostaria de ver em todos os jornais naquele limiar de ano novo: "O mundo acabou ontem!"
Recebi algumas cartas de protesto, mas o dono do jornal –que estava em Paris e já lutava contra a doença que o mataria dois anos depois– gostou da minha manchete e disse isso num curto bilhete. E é nele que eu pensei neste fim de ano: Paulo Bittencourt. Numa briga com Carlos Lacerda, demitido por Paulo até que injustamente, Lacerda o definiu: "O dr. Paulo só se vende por um jantar que ele mesmo paga". O mundo talvez não mereça acabar.

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