São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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A favor da reserva de mercado

ALFREDO STERNHEIM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em meio às discussões que cercaram o tratado mundial de livre comércio (mais conhecido como Gatt), a luta dos cineastas europeus na defesa do mercado interno conseguiu ampla repercussão na mídia internacional. Realizadores como Bertolucci, Wenders e muitos outros se manifestaram contra a invasão sistemática e poderosa do cinema norte-americano nas telas do continente. E os EUA reagiram; afinal, a sua indústria de entretenimento é a segunda em exportação, movimentando cerca de US$ 30 bilhões, boa parte vinda do Velho Mundo.
Mas a questão não sensibilizou muito os cineastas brasileiros. A não ser um artigo bem observado do roteirista Alcione Araújo publicado na Folha (18 de dezembro), não se viu nenhuma manifestação a respeito por parte da categoria. Um silêncio estranho, pois o problema existe no nosso cinema, o inimigo é o mesmo. Tanto que, no passado, foram criadas leis garantindo cotas anuais de dias para o filme nacional. Só no final do governo Sarney, deixaram de ser cumpridas.
A partir do grande engano chamado Collor, reserva de mercado virou palavrão. Em todas as áreas. Defendê-la era sinônimo de retrocesso, de cartelização. Um tecnocrata do arrogante governo, para justificar a sua posição contra a reserva, afirmou que filme é como sabonete, não merecendo nenhum tratamento especial.
Só que o sabonete brasileiro pode ser encontrado na prateleira de uma farmácia ou loja ao alcance do consumidor, competindo com o similar estrangeiro. O filme brasileiro não consegue espaço junto aos intermediários (cinemas e locadoras de vídeo) para que o público possa tomar conhecimento de sua existência. Uma produção nossa deve esperar a sua vez por meses, anos, até receber a carona no calendário de exibição dos cinemas, armado pelas "majors". Quem fizer um estudo profundo da história do cinema brasileiro vai verificar entre seus acertos o estímulo quantitativo que a nossa sétima arte obteve através do efetivo cumprimento da lei de reserva nos anos 60, 70 e 80. Enquanto em 1967 eram lançados 41 filmes longos, em 1975 saltava-se para 51. E em 1986 chegava-se a 112. Mas em 1990, foram realizados uns dez filmes, no máximo.
É claro que muitos cineastas não estão nada preocupados com o mercado. São aqueles apegados ao modelo corporativista da Embrafilme, em boa hora extinta. Daí o silêncio a respeito. Criada pela junta militar que substituia o general Costa e Silva em 1969, a Embra transformou-se numa panela que favorecia uma minoria de realizadores (Diegues, Luiz Carlos Barreto e família, entre outros) que recebiam altas verbas incompatíveis com a realidade do nosso cinema, além de dotações publicitárias que não entravam no custo final. Enquanto lá se gastava além da conta, a iniciativa privada fazia filmes com despesas inferiores ao que se poderia obter de renda no mercado interno. A única garantia desses cineastas de filmes não encucados e populares (e a empatia com o público existia) era a reserva de mercado.
Não é justo que, em atividades que movimentam US$ 100 e 300 milhões (o cinema e o vídeo respectivamente), o brasileiro tenha que continuar suplicando para ter vez em seu próprio país. Arte que reflete seu povo, o cinema é também indústria geradora de empregos. Daí ser essencial a reserva de mercado que garante a exibição e o lançamento do filme nacional, mas não obriga ninguém a vê-lo. Ao contrário do protecionismo que acirrou a cartelização da indústria automobilística no Brasil impossibilitando a compra de similar estrangeiro, a reserva não vai impedir que nosso país continue a ser um vasto mercado para o que existe de bom e de ruim (principalmente) no cinema das outras nações. Mas vai colocar o filme nacional ao alcance do público nos cinemas, nas TVs e nas locadoras. Exibido simultaneamente com o produto importado, dependerá de seus próprios méritos para obter sucesso.

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