São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livro discute o universo da leitura e do leitor

MARIA THEREZA FRAGA ROCCO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Marisa Lajolo, "Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo" (Atica), é desse raros trabalhos acadêmicos que aliam o peso teórico das discussões a um primoroso exercício de linguagem ficcional.
Uma escrita viva alterna no leitor diferentes movimentos: da reflexão mais sisuda –já que a autora vai fundo na discussão de temas cruciais– passa-se aos momentos bem-humorados, em que sorrimos com a ironia sutil da autora, com a graça de suas observações, perpassadas, vez por outra, por um ligeiro toque sarcástico.
A parte inicial, "No Mundo da Leitura", analisa as relações escola-leitura e leitura-leitor, que dificilmente se mostram, já que parecem recobertas por um tecido fechado, de trama apertada, urdida com aqueles imprevisíveis fios das circunstâncias escolares, sociais e individuais que marcam nosso país; fios que se entrelaçam às linhas desgastadas e batidas que sustentam os lugares tão comuns que tentam dar conta de questões ligadas à leitura.
Ao focalizar a literatura infanto-juvenil, Marisa Lajolo debruça-se inteligentemente sobre a historicidade de certas noções como a de criança, que vai se alternando com o tempo, pois conforme observa "a criança de que falava Rousseau não é a mesma para a qual escrevia Perrault e nem a que inspirou o 'Pinocchio' de Collodi".
Refletindo sobre essas noções de infância, adolescência e juventude enquanto construções históricas, a autora ressalta sua importância, alertando porém que tais representações pouco têm a ver com "as pessoas de carne e osso que os diferentes professores têm diante de si", visto que os discursos que as expressam instauram-se em um horizonte de total "provisoriedade".
Chegando ao "livro escolar", o foco da análise desloca-se para os catálogos de editoras.
Por meio de um jogo irônico-tautológico, a autora define tais catálogos como "documentos importantes, ensinando, no caso dos livros juvenis, que juvenil é o texto que consta de catálogos de editores voltados à produção juvenil" .
Assim, definições e generalizações banais acabam sendo impostas a professores e alunos que se vêem atrelados a um falso compromisso escolar, cujo objetivo primordial é de vender a realidade ditada pelo "consumo compulsório".
Quanto aos leitores, "esses temíveis desconhecidos", eles são objeto de apurada reflexão. Marisa Lajolo discute prazerosamente os possíveis perfis desses indivíduos que, livro nas mãos, estariam sempre perguntando ao escritor: "trouxeste a chave?" Questão a que ele jamais consegue escapar, já que "leitor e escritor são faces da mesma moeda, não obstante as quedas de braço em que ambos se confrontam".
Detendo-se sobre o imenso poder de que desfrutam os leitores, a autora revela a escritora, a perscrutar cuidadosamente, em seu leitor, os gestos de dúvida, de questionamento, de cumplicidade. Aqueles sinais que prenunciam alguma rejeição, que deixam filtrar uma contida adesão ou que evidenciam a desejada sedução.
Tentando esfumar a própria presença plural, e desenhando-se mais como leitora, Marisa Lajolo, no entanto, projeta com linhas firmes o contorno nítido de seu perfil de escritora. Escritora que mantém grande intimidade com os temas teóricos que elege e domina com extrema flexibilidade a linguagem com que os trata. Assim, falando muito a sério, brinca com o texto que cria, ironizando e matizando, até com uma ponta de amargura, aqueles "retratos de nós mesmos", aqueles retratos de nós-leitores, que às vezes existimos apenas naquilo que os textos deixam passar na penumbra.
Em "Leituras do Mundo", segunda parte do trabalho, expande seu pensamento com mergulhos inteligentes em textos de Pepetela, Monteiro Lobato, João Cabral e Machado de Assis.
O poema "Tecendo a Manhã", de João Cabral, é aquele que "fornece uma bela concepção de leitura". Partindo da prática ancestral de fiar e da idéia nuclear de tecer, Marisa Lajolo envereda por caminhos que apontam as muitas metamorfoses observadas no ato de ler.
Mesmo que primeiro na seleção da autora, preferi deixar Machado aqui para o final. Com invulgar refinamento, ela descreve a genialidade machadiana que "ao embaralhar os fios da ficção e da realidade transforma leitores em personagens, tematizando e encenando os caminhos do envolvimento do leitor com a matéria narrada". A seu ver, os textos de Machado "iluminam" questões históricas importantes, encenando-as literariamente. Penso que este livro segue por trilhas paralelas.
Se o cuidado teórico e a profundidade nas discussões atraem fortemente o leitor, o tom ficcional impresso à obra o prende definitivamente. O texto, muito bem desenvolvido esteticamente, projeta o trabalho para um espaço cultural mais ampliado. O cuidado com a linguagem e os requintes de certos arranjos verbais recobrem de forte luminosidade as questões discutidas.
Daí a grande atração exercida pelo livro. Daí o grande prazer experimentado com sua leitura. ( Maria Thereza Fraga Rocco)

Texto Anterior: Alemanha tem escola de livreiros
Próximo Texto: Estudos discutem ação do FMI
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.