São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Estudos discutem ação do FMI

GILSON SCHWARTZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É uma pena que os russos não leiam português. Seriam, hoje no planeta Terra, os mais beneficiados por dois livros de economistas brasileiros. Gesner Oliveira e Monica Baer acabam de publicar análises críticas da chamada "questão externa", mostrando que o FMI é mesmo aquela mula-sem-cabeça que a esquerda latino-americana sempre criticou.
Agora a esquerda já não precisa ficar rouca, pois é o próprio vice-presidente dos EUA, Al Gore, quem ataca pesadamente o Fundo. Motivo: aplicar de forma insensível a receita ortodoxa a um país especial, a Rússia.
Mas os livros servem ainda, e muito bem, para o Brasil. No último dia 17 de novembro, por exemplo, a manchete do jornal "Gazeta Mercantil" era: "Os juros baixos preocupam os técnicos do FMI." Pouco mais de um mês depois, o governo mostra que atendeu à sugestão do FMI e dessa vez o presidente Itamar nem reclamou, só resmungou.
Essa capacidade do FMI interferir na política econômica dos países em desenvolvimento, geralmente piorando as coisas, é uma questão econômica das mais inquietantes. A soberania do país é posta em xeque e assim, mesmo que a medida sugerida seja de uma racionalidade econômica previsível, a questão política permanece inquietando. Especialmente quando o resultado da aplicação da receita, como na Rússia, é um mergulho centrípeto no caos.
O economista Gesner Oliveira, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e há cerca de dez anos colaborador da Folha, retoma em livro o exame da fronteira entre economia e política que a história do FMI delimita. Professor da FGV-SP, mestrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorado por Berkeley (EUA), Gesner Oliveira domina a arte de explicar com clareza os assuntos complexos da economia política.
O livro busca uma posição equilibrada num tema em que esquerda e direita sempre radicalizaram oposições. Procura uma objetividade que justifica o uso de métodos estatísticos para avaliar a legitimidade das receitas do FMI.
Essa legitimidade, preocupação central do livro, é traduzida em dois fatores básicos, externo e interno. Externamente, coloca-se a questão da adequação de um modelo de estabilização, por exemplo um "Plano Carnaval" (época também mais provável para a "URVerização" do ministro FHC). Internamente, entretanto, a legitimidade do modelo depende de um grau de implementação mais ou menos satisfatório. Ou seja, para ser legítimo (ter sucesso) um modelo de estabilização deve ser teoricamente correto e satisfatoriamente implementado
Gesner Oliveira apresenta no início sua conclusão: "A experiência brasileira sugere que os sucessivos fracassos em termos de estabilização estão associados a ambas as dimensões. Os programas adotados foram inadequados e o seu grau de implementação foi insatisfatório". Não há bode expiatório, há imperfeições internas e externas, teóricas e práticas.
Além desse modelo que combina externo e interno, o livro apresenta uma visão otimista do futuro do FMI. Estariam ocorrendo mudanças em seu modelo de estabilização, e novidades no âmbito da implementação, com a perda relativa de peso dos EUA e uma evolução para esquemas mais multilaterais, com peso crescente da Europa e do Japão.
Quanto ao passado, o autor é bastante crítico e aponta sete objeções à abordagem do FMI: subestimação da rigidez setorial e defasagens intertemporais, subestimação das assimetrias na formação de preços, falta de uma teoria da inflação inercial, desconsideração dos efeitos negativos da liberalização radical dos juros, viés ideológico contra o setor estatal, insistência em programas com financiamento externo insuficiente (e portanto sobrecarga dos agentes internos) e negligência sobre os impactos negativos da estabilização sobre a distribuição de renda.
Mas o problema não é apenas a inadequação da receita do Fundo. A resistência que se observa à implementação da receita em muitos países deve ser explicada também por motivos internos. Gesner Oliveira aponta a desigualdade na distribuição da renda como origem do problema. Quando "a repartição dos rendimentos é injusta, torna-se difícil impor os sacrifícios que, ao menos no curto prazo, são inerentes ao esforço estabilizador". É uma forma de dizer que o modelo do FMI é uma receita de Primeiro Mundo, inoperante nos países onde é maior a injustiça distributiva.
Gesner Oliveira permanece o tempo todo, entretanto, dentro do campo da política econômica definido pelo FMI. Monica Baer chega a conclusões bastante coincidentes com as de Oliveira. Já no prefácio, Celso Furtado resume: "A saída não está no aprofundamento da recessão, é esta a maior lição deste livro."
O livro de Monica Baer tem ainda um mérito metodológico que o diferencia do de Oliveira: apesar de tomar como objeto a mesma política econômica no contexto de ajustes à la FMI, Baer pende para a reconstrução historiográfica e valoriza o detalhe da experiência brasileira, contra o panorama estatístico que ilustra as teses de Oliveira. Mas Monica Baer retrata essa história atenta à necessidade de revisão teórica. Seu trabalho empírico acaba colocando a teoria ortodoxa em maus lençóis. O passe de mágica é entender que o "choque externo" é um problema financeiro.
Se o problema imediatamente visível é um problema de política econômica de curto prazo (como sublinha Oliveira), Monica Baer percebe que além das aparências está em jogo uma crise financeira internacional. Nesse sentido, aprofunda teses que se tornaram célebres nos anos 80 como da Escola de Campinas. É a partir de uma visão crítica dessa dimensão histórica e institucional que o fracasso das receitas do FMI foi entendido pelos economistas da Unicamp, onde o livro foi tese de doutorado.
A inadequação das receitas do FMI é portanto refém de uma teoria ruim, mas mesmo que a teoria fosse corrigida (criando-se diferentes possibilidades de "mix" de políticas fiscais, cambiais, monetárias, etc.) a dificuldade continuaria. Pois é exatamente essa engenharia hidráulica que enguiça nos processos de crise institucional.
Monica Baer insiste, com razão, na dimensão de "estoques" na consideração da política econômica em crise, uma situação em que os ajustes de fluxo, ao longo dos anos 80, "pareciam ficar aquém das necessidades".
O choque externo, para Baer, não é apenas uma oscilação abrupta nas variáveis de um modelo. É o próprio equipamento que perde a capacidade de medir o que se passa, como se alguém buscasse a orientação de uma bússola em meio a uma tempestade magnética.
Tudo indica que os anos 90 trazem mudanças nesses níveis –teórico, institucional e nas condições de resistência interna ao ajuste, em cada país. O exame detido e sem preconceitos dos fracassos dos 80, nesses livros, pode servir como antídoto contra ilusões de ajuste automático às mudanças externas, com ou sem choques.

AS OBRAS
Brasil-FMI: Frustrações e Perspectivas, de Gesner Oliveira. Prefácio de José Serra. Capa de Carmela Gross. Editora Bienal (tel. 853-1856). 183 págs. CR$ 2.200
O Rumo Perdido, de Monica Baer. Capa de Isabel Carballo. Paz e Terra (r. do Triunfo, 177, São Paulo, CEP 01212, tel. 011 223-6522). 213 págs. CR$ 3.680.

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