São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Análise do 'caso Quércia' é apressada e imprecisa

FREDERICO VASCONCELOS
EDITOR DO PAINEL S/A

Leitura do 'caso Quércia' é apressada e imprecisa
Em "Jornalismo de In(ve)stigação - O caso Quércia", o jornalista Sérgio Buarque de Gusmão procura apresentar o ex-governador Orestes Quércia como vítima de uma "campanha" da "Veja", "O Estado de S. Paulo" e Folha.
Ele critica as reportagens sobre o patrimônio de Quércia, a privatização da Vasp e as importações sem licitação de equipamentos de Israel. O livro –cuja leitura Quércia tem recomendado– trata como iguais coisas distintas.
A indignação da sociedade com a falta de ética exige a transparência das instituições, incluindo-se a imprensa. Mas é preciso distinguir a crítica fundamentada da tentativa de desqualificar apurações criteriosas, seja por desinformação ou por esperteza. Autor das reportagens sobre as importações de Israel que deram origem ao inquérito judicial, limito-me a comentar esse capítulo, onde há imprecisões, inverdades, omissões e uma boa dose de leviandade.
Gusmão fez a leitura apressada de um caso complexo sem ouvir o "outro lado". Cometeu a falha maior que tenta apontar no trabalho alheio (o título do capítulo das importações é "Ao outro lado, silêncio").
Como desculpa, Gusmão diz que não fez "investigação paralela nem checagem de fatos para evitar contestações de difícil elucidação". "A análise livrou-se da tendenciosidade", diz.
Gusmão desconhece o caso, pois chega a dizer que os equipamentos universitários "não chegaram ao Brasil" (sic). Toma emprestado alegações da parte comprometida e reproduz opinião do ex-ombudsman da Folha, Mário Vitor Santos, para quem o jornal prejulga ao denominar as importações de "irregulares".
Se a operação fosse "regular" o governo estadual não suspenderia a importação dos equipamentos para a USP e Unicamp, pela qual já pagou US$ 700 mil de sinal. Ela tem vícios iguais aos das compras anteriores para a Unesp e para a polícia.
Os contratos tinham objetos genéricos, deixando-se os preços e a descrição dos equipamentos nos anexos, aos quais as partes interessadas não tiveram acesso, como alertou o consultor jurídico Carlos Alberto Americano.
A operação foi consumada graças a uma declaração de quatro linhas, firmada em cima da hora pelo então reitor da USP, Roberto Leal Lobo, atestando que os preços eram "compatíveis", embora nenhum professor soubesse quais eram os preços cobrados. Ele confirmou à PF que não assinaria novamente tal documento.
Um protocolo firmado por Quércia e pelo ex-cônsul de Israel, Tzvi Chazan, padrinho de casamento do ex-governador, sustentou as importações. Foi considerado "eivado de vícios" por um jurista e dois ex-chanceleres (um deles ex-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Israel).
Não é verdade, como diz Gusmão, que Severo Gomes "forneceu as primeiras informações" ao jornal. Ético, o ex-senador encomendou um parecer ao jurista Miguel Reale Júnior depois das revelações da Folha e só aceitou conversar com este jornalista no dia seguinte a seu depoimento à PF.
Não é verdade que três juristas tenham dado pareceres favoráveis às importações para as universidades, como informa Gusmão. Esses pareceres admitiam a inexigência de licitação para a compra do sistema de radiocomunicação da Polícia Militar, por se tratar, em tese, de fornecedor exclusivo.
Alegando "economia processual", o Tribunal de Contas do Estado ampliou esse entendimento para sistemas de ensino, armas e apetrechos de diferentes fabricantes, sob o argumento de que era "matéria idêntica".
Graças à "ligeireza" do TCE, um único intermediário –Arie Halpern, da Trace Trading Company, representando empresa de um paraíso fiscal– atuou como fornecedor exclusivo de diferentes produtos, no total de US$ 310 milhões.
O autor diz que houve "jornalismo militante" e uso de "informações de cocheira", alimentadas por procuradores ou deputados do PT. Tive acesso franqueado ao processo e a Folha só divulgou o que podia documentar. Não acolheu, por exemplo, comparações de preços de armas feitas por parlamentares do PT, por não haver participado de sua elaboração.
Não é verdade, como diz Gusmão, que a missão enviada a Israel tenha feito "confronto de preços". O relatório sigiloso não traz qualquer lista de preços.
As evidências de superfaturamento foram levantadas pelos professores Armando Laganá e Márcio Rillo, da USP, a pedido da Folha. Sustentadas em depoimentos à PF, foram confirmadas em três perícias. A última delas, com a participação de três cientistas, comprovou superfaturamento de 343%.
Gusmão comete leviandade ao publicar acusações de Halpern, insinuando que Laganá tinha "envolvimento" com multinacionais. Não registrou o abaixo-assinado de 55 professores da USP em repúdio a essa agressão (o empresário está sendo processado na Justiça por Laganá).
Gusmão diz que a Folha "duvidou da honestidade" do ex-secretário Luiz Gonzaga Belluzzo, ao publicar em título que "Belluzzo tenta isentar Quércia e Fleury". Belluzzo disse textualmente: "Quem praticou atos no processo fui eu. Nem Fleury nem Quércia praticaram atos."
O caso está no STJ porque há "indícios veementes" da participação do ex-governador e do atual. O ex-comandante da PM, coronel Wilson Correa Leite, disse à PF que recebeu do gabinete de Quércia cópia do protocolo e de catálogos de empresas.
Estranhamente, Gusmão se apóia em textos da Folha, mas conclui o capítulo reescrevendo texto de "O Estado de S. Paulo", como "prova de que só matérias inconsistentes podem ser reviradas pelo avesso" (sic).
Gusmão omite que Halpern e o delegado Antonio Decaro Júnior, que presidiu a primeira fase do inquérito, foram denunciados por fraude processual (Halpern responde a outros processos por fraude cambial).
Omite que várias decisões do juiz João Carlos da Rocha Mattos sofreram correições. Omite ainda as ameaças de morte a procuradores da República e o fato de que tive telefonemas grampeados, cujas fitas gravadas foram usadas como tentativa de intimidação.
Mais grave é a pretensão de Gusmão, ao afirmar que apontou "erros de método e derrapagens éticas que nenhuma sentença de tribunal poderá anistiar. O caso das importações ainda está em tramitação. Os critérios da Folha, contudo, já foram julgados em instância apropriada: na Justiça, com a rejeição da queixa-crime movida por Halpern contra mim".
O advogado Luís Francisco Carvalho Filho apresentou sólida defesa com 52 documentos. O promotor Pedro Luiz de Mello entendeu que fiz "as publicações com base em documentos oficiais". Segundo Mello, o jornalista "não inventou nada, estava no exercício regular do seu direito de informar o público". "Na verdade, mais do que direito, DEVER", retificou, com letras maiúsculas, o juiz Oswaldo Ceccara em sua sentença.
Entre a manifestação da Justiça e as insinuações de um livro com sabor de certo tipo de jornalismo de serviços, fico serenamente com a primeira.

A OBRA
Jornalismo de Investigação - o caso Quércia, de Sérgio Buarque de Gusmão. Capa de Felipe Taborda e Geysa Adnet. Civilização Brasileira (av. Rio Branco, 99, 20.º andar, CEP 01251-000, Rio de Janeiro, tel. 021 263-2082, fax 021 263-6112). 235 págs. CR$ 6.290.

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