São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Liga Norte quer recriar Estado italiano

HUMBERTO SACCOMANDI
ENVIADO ESPECIAL A MILÃO

Muitos brasileiros podem perder o direito de obter a nacionalidade italiana se a Liga Norte se tornar o maior partido da Itália nas próximas eleições. É o que diz o senador Gianfranco Miglio, 75, considerado o ideólogo do partido. Ele se opõe também à extensão do direito de voto aos italianos residentes no exterior.
Segundo Miglio, a lei italiana que concede a cidadania a descendentes até a terceira geração é absurda. "Era parte de um plano para conquistar esses países sem guerra", diz o senador. Ele argumenta ainda que a Itália está em dificuldades econômicas e "não pode garantir aposentadoria a meio mundo".
Miglio foi por 47 anos professor na Universidade Católica de Milão. Dirigiu por 30 anos a faculdade de Ciência Política, até se aposentar, em 1991. Em entrevista exclusiva à Folha, o senador defende a Liga Norte das acusações de racismo e xenofobia, explica a proposta federalista e alerta contra o perigo da hegemonia político-militar da Alemanha na Europa.
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Folha - Como o sr. classifica a Liga Norte no espectro político?
Gianfranco Miglio - Nem de direita, nem de esquerda. Somos liberal-democratas. Combatemos o Estado assistencial e defendemos a economia de mercado. Os demais partidos crêem que o problema italiano possa ser resolvido mudando os homens no poder, colocando pessoas honestas no lugar dos desonestos de agora. A Liga acredita que é preciso mudar profundamente as instituições. Se mantivermos o Estado centralizado, em poucos anos a Liga se tornará tão corrupta quanto os partidos hoje no poder.
Folha - Por que houve essa ascensão rapidíssima da Liga?
Miglio - As pessoas compreenderam que estavam sendo enganadas. Os italianos confiavam o mandato eleitoral ou à Democracia Cristã e seus aliados ou a um agrupamento de esquerda. Depois disso, se desinteressavam sobre como aquele mandato era usado. Eles perceberam, porém, que o sistema se tornou ineficiente e corrupto e decidiram mudar isso.
Folha - A Liga é racista?
Miglio - Não. Nós apenas constatamos que o nosso sistema político-administrativo tinha se degenerado e que 95% dos funcionários públicos são do sul do país. Isso é uma estatística oficial. Nós pedimos que quem produz mais e paga mais impostos tenha um papel determinante na gestão do país.
Só as grandes empresas do norte, como a Fiat, tinham esse papel, por serem favorecidas financeiramente pela corrupção do Estado. São empresas meio privadas, meio estatais. Desde a sua fundação, no século passado, a Fiat vive nas costas do Estado, através de proteções alfandegárias e incentivos. É um capitalismo sem capital e sem risco. A Liga acha possível corrigir essas distorções.
Folha - A Liga é contra os estrangeiros?
Miglio - Não, pelo contrário. Temos boas relações com os estrangeiros. Estamos preparando uma convenção de grandes empresas internacionais, daquelas que não pedem dinheiro ao Estado, como a Fiat e a Olivetti. Acreditamos na integração européia e internacional.
Folha - E quanto aos estrangeiros pobres, os imigrantes?
Miglio - Defendemos uma imigração controlada. A Itália deixou entrar todo mundo até agora. Isso levou a uma situação preocupante, com imigrantes de cor limpando vidros dos carros nos cruzamentos. Isso é culpa dos socialistas, que pretendiam aumentar seus votos fazendo entrar imigrantes e dando a eles o direito de votar.
Folha - A Itália tem uma das políticas mais liberais quanto à concessão de nacionalidade a descendentes de italianos. Vocês pretendem manter isso?
Miglio - Não. Essa lei é uma loucura. Ela nasceu do Ministério do Exterior, que queria aproveitar os nossos muitíssimos "oriundos" para uma espécie de conquista sem guerra desses países. Isso poderá se tornar um grave problema financeiro. A carga dos gastos com a aposentadoria está desestabilizando a economia italiana. Nessas condições, não podemos garantir aposentadoria a meio mundo.
Folha - E o direito de voto aos italianos no exterior?
Miglio - Isso traria graves problemas. Se fosse aprovado, seria difícil excluir os cerca de 25 milhões de "oriundos". Isso criaria situações conflituosas. Não é admissível que um país tenha uma campanha eleitoral para um eleição num outro país, distante milhares de quilômetros.
Folha - A Liga aceitaria formar uma coalizão?
Miglio - Talvez, mas para isso será determinante que haja um repasse de poder para quem produz e paga impostos e que seja aceito o programa federalista da Liga. Eu pessoalmente penso que convém permanecer na oposição, especialmente se os ex-comunistas do PDS chegarem ao governo. Eles não poderão fazer uma política de austeridade e restaurarão o Estado assistencial. É melhor ficarmos de fora e nos prepararmos para o próximo assalto.
Além disso, creio que o novo governo não terá vida longa, com o país dividido entre Liga, PDS e os neofascistas do MSI. Esta próxima eleição está sendo preparada "ad hoc" para salvar alguns políticos velhacos. Haverá novas eleições logo em seguida, com novas mudanças na lei eleitoral. A Segunda República só surgirá após duas ou três eleições, num breve intervalo.
Folha - O que é o federalismo à italiana?
Miglio - É um agrupamento de regiões em três grandes grupos: o norte, o centro e o sul. As ilhas Sardenha e Sicília já têm um status especial e manteriam a sua autonomia. As funções atuais do Estado seriam repassadas a esses agrupamentos. Acreditamos que uns seis anos depois de implementada essa reforma o aparato do Estado seria reduzido em 50%.
Isso afetaria toda uma geração de universitários do sul que sonha se formar e trabalhar para o Estado. Precisamos acabar com o sonho do funcionalismo público.
Folha - Qual é a política externa da Liga?
Miglio - Temos uma forte simpatia pela integração européia, que não pode ser revertida. Mais difícil é a união política. Toda a Europa está se voltando para um perigoso nacionalismo. Isso põe a ameaça do retorno da hegemonia político-militar da Alemanha. Se os países se fecharem, como querem os nacionalistas, teremos uma Europa dominada por uma grande nação alemã, que em cinco anos terá digerido o problema da reunificação. Temos de intervir para que essa potência permaneça no campo econômico, e não no político-militar.
A Liga defende o fim dos Estados nacionais e a criação da Europa das grandes regiões. Ao contrário dos neofascistas, não temos ambições territoriais. Quanto mais permeáveis as fronteiras, melhor.
Folha - Como será a Itália pós-escândalos?
Miglio - Espero que seja federalista e que as regras do Estado de Direito sejam restabelecidas. Contamos muito com o efeito pedagógico de se ver os chefes da Primeira República na cadeia, vestindo camisas listradas. Todos devem saber que quem faz política ou administra o país vai preso se sair da linha.

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