São Paulo, domingo, 2 de janeiro de 1994
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Tempos malucos

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

No meu tempo de estudante de ginásio, dizíamos existir em nossa escola dois tipos de professores: o que pensava que era deus e o que tinha certeza que era deus.
O professor Fulgêncio se enquadrava no primeiro tipo. Ensinava química. Bom professor. Sabia bastante. Entretanto, achava-se o único conhecedor da sua matéria. Dizia-se contemplado pelos céus por ter um QI altíssimo. Nunca medimos –ele é quem dizia. Mas afirmava aquilo com tanta convicção que a garotada, pelo menos na sua frente, o tratava como deus. O Fulgêncio ficava com a bola cheia...
O professor Batista era do segundo tipo. Ensinava matemática. Tinha, também um bom preparo. Mas a sua vaidade era medida em milhas marítimas. Adorava um espelho. Exalava segurança. E não admitia que ninguém pensasse ser ele sujeito a erro. Estava absolutamente convencido de que era deus e a molecada, como no caso do Fulgêncio, dava-lhe o condizente tratamento. O Batista vibrava.
Fulgêncio e Batista, que, apesar da coincidência dos nomes nunca puseram seus pés em Cuba, foram produtos de um tempo em que o exercício da autoridade era mais importante do que a própria autoridade. Quando era comum ouvir-se:"Você sabe com quem está falando?" O importante era aparentar ser. E conseguir o devido respeito da "galera".
Pensei que esse tempo tinha acabado. Qual não foi a minha surpresa, ao me deparar com duas figuras políticas no ano passado –no finzinho do século 20. De fato, em 1993, tivemos um deputado federal que, como o Fulgêncio, afirmou ter linha direta com Deus, o que lhe permitiu, dentre outras coisas, ganhar centenas de vezes na loteria. Homem de pé quente, ou melhor, de mãos quentes. Ele nem se abalou quando lhe explicaram que, segundo a lei das probabilidades, o seu feito daria muita mão-de-obra até mesmo para o verdadeiro Deus. Ainda assim, ele não se tocou. Continuou anunciando aos quatro ventos gozar da mais estreita intimidade com o Todo-Poderoso.
No mesmo ano, tivemos a declaração de um conhecido homem público de nosso Estado que comunicou ao seu respeitável público ser mais honesto do que Jesus Cristo. Lembrei-me, na hora, do Batista. É o próprio. Vaidoso como ele. E, totalmente convencido de que é deus e melhor do que o seu próprio filho. Uma convicção que deixou aturdidos todos aqueles que sempre veneraram Cristo como o exemplo de todos os exemplos.
Os americanos também têm um pouco dessa mania. Sem consultar ninguém, foram logo escrevendo nas notas de dólares que em Deus nós confiamos –"In God we trust". Uma frase dúbia. A gente não sabe se, com ela, eles revelam infinita confiança em Deus ou total desconfiança nos homens. Entretanto, não sinto presunção naquela frase. Se fosse no Brasil –e se, por azar, estivéssemos sob a gerência dos dois ungidos, eles, certamente, já teriam feito a Casa da Moeda imprimir seus retratos em cada lado das notas, com os modestos dizeres: "Em nós, Deus confia".
Bem, é ano novo. É hora de descontrair para, então, recomeçar. Aos meus leitores, desejo um mundo de realizações. Fiquem todos com as bênçãos de Deus, mas não exagerem nas intimidades porque isso não pega bem pra gente de bom senso.

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