São Paulo, terça-feira, 4 de janeiro de 1994
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O real peso dos encargos sobre salários

EDWARD J. AMADEO

Não há como se justificar a proposta de redução pura e simples de "encargos" sobre a folha de salários. Trata-se de uma proposta com efeitos desconhecidos, com escassa racionalidade técnica e origem ideológica enigmática.
Parte-se do pressuposto de que, com a redução dos encargos sobre a folha, haverá crescimento do emprego formal. Provavelmente sim, mas não é este o ponto. O problema é o que a proposta deixa de levar em conta. Eis a lista dos aspectos desconsiderados:
– Parte não-desprezível dos chamados encargos sobre a folha beneficiam diretamente os trabalhadores ou as próprias empresas;
– A competitividade da indústria brasileira depende muito menos do peso dos encargos que da produtividade do trabalho;
– A parte que não beneficia diretamente trabalhadores e empresas financia a seguridade social e outros gastos sociais;
– Por último, ao proporem a transferência da contribuição para o INSS da folha para o valor adicionado, os proponentes não consideram os efeitos distributivos nem os efeitos sobre a arrecadação tributária.
A tabela ao lado mostra como se distribuem os encargos entre o que vai para o trabalhador, o que fica com as empresas e o que vai para o governo. O salário do trabalhador inclui o décimo terceiro, o abono de férias, o FGTS, o uso do dinheiro do Sesi, o vale-transporte, os salário maternidade e doença etc. Nenhum destes ítens é "encargo social", nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. Vão para o bolso do trabalhador e são parte do salário. As horas que o trabalhador ganha, mas não trabalha (férias ou feriados) aumentam o custo do trabalho, mas vão para o bolso do trabalhador. Também não são encargos. São parte do salário.
As contribuições para o Senai e o Sebrae tampouco são encargos: é dinheiro usado pelas próprias empresas e pelas associações patronais. Não vão para o governo.
Encargos mesmo só o INSS (20%), o salário-educação (2,5%) e a contribuição relativa a acidentes de trabalho (2%). Somados são 24,5%.
Como dizem os especialistas, o que importa nesta discussão é a diferença entre o que o trabalhador recebe e o que a empresa paga. Esta é a chamada "cunha fiscal". Pois bem, a cunha fiscal no Brasil, dada pela razão entre o que o trabalhador recebe por hora efetivamente trabalhada e o que a empresa paga é de 24,5%. Isto corresponde à razão entre o custo do trabalho para a empresa (descontadas as contribuições para Sebrae e Senai que ela recobra) e o que recebe o trabalhador (incluindo horas não trabalhadas), isto é, 184,5/148,2, igual a 1.245.
Dados publicados pelo "Bureau of Labor Statistics" dos EUA mostram que a diferença entre o que o trabalhador recebe e o que a empresa paga por hora trabalhada tem os seguintes valores em outros países: EUA (28,4%), França (39%), Alemanha (29,5%), Itália (44%), Suécia (45,5%). Obviamente a situação brasileira está longe de ser tão ruim. Principalmente se considerarmos que o custo salarial horário na manufatura no Brasil é menor que US$ 3, enquanto nos outros países é um muito maior: EUA (US$ 16), França (US$ 17), Alemanha (US$ 26), Itália (US$ 19), Suécia (US$ 24). Em parte o diferencial de salários se deve a diferenças na produtividade no trabalho. O trabalhador alemão tem que ser nove vezes mais produtivo que o trabalhador brasileiro para que sejam igualmente competitivos os produtos alemães e brasileiros.
Os números tirados do bolso do colete sobre o peso dos encargos no Brasil são escandalosamente errados. Há um tempo atrás era 100%. Vozes esbravejantes nos diziam "para cada 100 cruzeiros pagos em salários o empresário tem que pagar mais 100". Tenho ouvido falar de 126%, 132% e por aí vai. Deve ser a cultura inflacionária. O número correto é rigorosamente 24,5%.
As propostas na praça são de reduzir os "encargos". Reduzir a parte que vai para o trabalhador é o mesmo que propor a redução dos salários. Se é esta a proposta, melhor e mais honesto é colocar neste termos.
Quanto à contribuição para a seguridade, faltou dizer às grandes empresas que, se o INSS passar a incidir sobre o valor agregado, elas pagarão mais, e não menos, impostos. Isto pela simples razão de que se é para manter constante a arrecadação do INSS –se for para diminuir não é séria a proposta– haverá uma redistribuição dos encargos das empresas com baixa relação valor agregado/folha para as empresas com alta relação. Esta relação é muito menor nas pequenas empresas que nas grandes.
Logo, com a incidência sobre o valor agregado, passam a pagar menos impostos as pequenas empresas e passam a pagar mais impostos as grandes empresas. Se as grandes empresas estão de acordo, ótimo. Falta dizer como se dará a fiscalização do recolhimento do imposto. Por que fiscalizar encargos sobre a folha é fácil, agora sobre o valor adicionado é coisa bem diferente.
Parece incrível que num governo com dificuldades para aumentar a arrecadação tributária e com dificuldades para financiar a seguridade social e a saúde pública, apareça uma proposta com efeitos tão duvidosos sobre a carga tributária. Não é que flexibilizar o salário ou aumentar o nível de emprego formal não seja importante. Mas há formas e retóricas diferentes de chegar a estes objetivos.
Se o problema é flexibilidade salarial, pode-se propor que os ítens que compõem o salário sejam flexibilizados de tal modo que se a empresa estiver em dificuldades possa negociar com os seus funcionários um "abatimento". Mas tecnicamente isto deve ser interpretado como uma redução do salário, não de encargos. Por isto teria que passar por uma negociação em que a empresa se dispuzesse a abrir os livros para provar que está em apuros. Além disto, a empresa deveria, com base no mesmo princípio, estar disposta a pagar um bônus extra –um décimo-quarto salário– num ano em que as coisas estiverem melhor.
Sobre o INSS, pode-se propor que à empresa seja facultado o direito de contratar mais trabalhadores do que tem hoje pagando no mínimo o que já paga ao INSS. Com isto a contribuição por trabalhador cairia, mas não haveria queda de arrecadação. As empresas que nunca contribuíram, poderiam ter um abatimento de 50% por um ano, mas nunca mais que isto. Caso contrário as empresas que contribuem ficam em desvantagem.
Estas alternativas são muito diferentes da simples redução, por lei, dos salários ou da contribuição para a seguridade social. São alternativas que não confundem salários com encargos, evitam o voluntarismo liberalóide e não põem em risco a arrecadação do INSS.

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