São Paulo, terça-feira, 4 de janeiro de 1994
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Bases para a criação de uma nova ética

TIBÉRIO CESAR GADELHA

O atual momento brasileiro de repulsa perante a corrupção instalada em nossas instituições aumentou o clamor da sociedade brasileira por uma nova ética na vida do país. Não se pode, contudo, deixar que a repulsa nos leve a posições emocionais ao invés de nos conduzir a uma análise fria e objetiva, tão necessária à criação de instrumentos capazes de impedir a repetição dos fatos lamentáveis que ora são presenciados.
O dinheiro público é sagrado. O desvio, de um cruzeiro que seja, deve ser, rigorosamente, investigado. É necessário, entretanto, que se dê à sociedade a dimensão exata do fato: a investigação e a punição são importantes para o surgimento de uma nova ética no país, mas não será o dinheiro, ora posto em suspeição, que irá salvar o país ou dar condições para reverter rapidamente o caos social e econômico. Para comprovar o que aqui é afirmado, basta uma análise sintética da proposta original orçamentária, enviada ao Congresso, e que fixava os gastos da União para 1994:
1) os recursos destinados no Orçamento a investimentos (na maioria obras) perfazem 5,1%. Desses recursos, o Congresso Nacional, em virtude de vinculações legais e constitucionais, não pode mexer nem em um ponto percentual;
2) os recursos destinados a inversões financeiras ultrapassam os recursos para investimentos e atingem 6,5% do Orçamento. Este dinheiro servirá para cobrir déficit e gastos das nossas estatais;
3) 36,1% do Orçamento irá diretamente para o setor bancário para amortização da dívida e pagamento de juros e encargos. A maior parte desses recursos destina-se ao financiamento do déficit público.
Enquanto o país praticamente pára com a CPI por causa de 1% do Orçamento, 42% do mesmo Orçamento não é sequer discutido: já está escrito na Lei de Diretrizes Orçamentárias que o antecede e prevalece sobre ele. Não que se deva esquecer a corrupção. O que não se pode é ficar só na corrupção, deixando fatores estruturais de lado.
Uma nova ética não virá de graça. Não será possível a sua criação sem que se mostre de forma franca onde estão os problemas e como eles devem ser atacados e, também, sem se dispor de um arcabouço institucional que permita a punição exemplar de quem transgrida as normas. Nada corrompe mais do que a certeza da impunidade.
Foi essa certeza de impunidade, aliada a uma legislação que permitia dirigismo político nas licitações e favorecimento na execução dos contratos, que criaram um cenário propício à corrupção e à extorsão no relacionamento setor público/setor privado. Não só setor público e empreiteiras, como vem sendo particularizado pela CPI, mas setor público e empresários: sejam eles fornecedores ou prestadores de serviços.
Algumas das maiores empresas de engenharia do Brasil atuam no setor privado e todas já atuaram. Não se conhece um único caso de denúncia de corrupção de um cliente privado contra qualquer outra empresa privada. Isso porque o setor privado tem um modelo gerencial mais ágil, paga melhor e em dia, treina, valoriza e profissionaliza os seus recursos humanos, tem aptidão para a atividade empresarial e, sobretudo, a certeza de que ninguém cobrirá eventuais rombos financeiros por má administração. Aí está a essência da ética que rege as relações no setor privado.
A eliminação da corrupção passa primeiro pela redução do Estado e pelo fim do Estado-empresário. O Estado atuando primordialmente nas funções em que é insubstituível: segurança, saúde, educação, infra-estrutura básica e áreas estratégicas.
Em segundo lugar passa pelo rigor da legislação no ponto que se refere ao pagamento das faturas por ordem cronológica e na data do vencimento. A falta de punição por atraso de pagamento contribui para a irresponsabilidade nas contratações e no endividamento público e transforma as contratadas em presas fáceis de extorsão principalmente nos períodos de crise econômica e de juros elevados, onde o recebimento de faturas pode significar a sobrevivência da empresa e o emprego dos seus funcionários.
Por último, é necessário punir de forma exemplar o empresário corrupto que se beneficia inescrupulosamente do dinheiro público. Cumpra-se, então, a lei n.º 8666/93, que prevê penas de reclusão que variam de dois a cinco anos, além de multa para os que se beneficiarem ilegalmente de contratos e licitações. A lei ainda prevê que os crimes tipificados são de ação penal pública incondicionada e que o rito processual, para esses crimes, seja sumário.
Para que seja evitado o endividamento irresponsável, poder-se-ia prever constitucionalmente a isonomia dos contratos de fornecimento de bens e serviços (inclusive obras) com os contratos de empréstimo e financiamento, principalmente sob os aspectos de prestação de garantias e intervenção nos Estados e municípios por falta de pagamento da dívida fundada.
Por que ninguém fala em corrupção nos empréstimos privados ao setor público? Porque a entidade pública oferece como garantia a arrecadação dos impostos. Se na data aprazada a entidade não paga, o banco retém o imposto dado como garantia para liquidação da parcela ou do empréstimo. Assim, não há necessidade de favorecimentos ou propinas para o recebimento da parcela ou fatura. Tudo muito limpo e transparente.
Assim deveria ser o procedimento para todo contratado pelo serviço público. Além de ser um procedimento anticorrupção, funciona como freio para o endividamento: quando acabar a disponibilidade de cotas de impostos ou taxas, a serem cedidas como garantia, o governo não poderá contratar.
Caso a sugestão seja aceita, após a revisão constitucional haveria a renegociação dos passivos financeiros públicos com os credores privados e, a partir daí, viriam a adimplência e o tão desejado ajuste das contas públicas, condição "sine qua non" para a derrubada da inflação.
O administrador público sem o poder de dirigir a licitação, de privilegiar e protelar pagamentos não poderá extorquir e ninguém se interessará em corrompê-lo. Adicionalmente, as empresas voltarão a se dedicar ao seu objeto social e não ao "lobby" ou à captação de recursos.
O fim da corrupção e a construção de uma sociedade ética estão nas nossas mãos.

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