São Paulo, terça-feira, 4 de janeiro de 1994
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Com a (última) palavra, a acusação

JOSÉ ROBERTO BATOCHIO

A consciência ético-jurídica dos povos civilizados impõe, em qualquer espécie de julgamento, a observância de princípios que constituem os fundamentos da legalidade do veredicto a ser proferido.
Dentre esses princípios, consagrados pela cultura universal do nosso tempo, merece especial ênfase o chamado princípio do contraditório.
Consiste ele na obrigatoriedade de se assegurar ao acusado a concreta ciência de todos os atos reprováveis que lhe são atribuídos, bem como de tornar efetiva a possibilidade de contestá-los, um a um.
Numa palavra: conhecimento completo da acusação e oportunidade de reação, eis o binômio no qual se enfeixa o princípio do contraditório, pressuposto de legitimidade de qualquer juízo de valor sobre a conduta humana.
Acha-se embutida nesse conceito uma concepção de justiça instrumentária, que passa, necessariamente, pela noção de equilíbrio de oportunidades entre aquele que acusa e aquele a quem se acusa. Essa condição de paridade de armas dialéticas ("par conditio") encontra raízes profundas na concepção do justo, segundo a moralidade e a axiologia da sociedade humana contemporânea.
Nossa Constituição Federal a consagrou, elevando-a à dignidade de norma reitora, eis que assegura o contraditório não só nos julgamentos criminais, mas também nos de outras espécies.
Cifrando-se o princípio em causa na relação imputação-oportunidade ampla de resposta, fica assentada, de modo inequívoco, a premissa de que o acusado deverá, necessariamente e sempre, ter a última palavra antes de concretizado o julgamento. É um postulado que decorre não somente da formulação jurídica democrática, mas arrima-se nos valores de uma sociedade livre; enfim, na ética coletiva.
Se temos visto o respeito a tais enunciados nos julgamentos realizados perante o Poder Judiciário e perante a administração em geral, menos exato não é que isso não tem ocorrido, por vezes, nos julgamentos públicos levados a efeito por certos setores da nossa imprensa.
Ali, a liberdade de acusar não atende a parâmetros de limitação, senão fica vinculada ao critério exclusivamente subjetivo da pena do acusador, que pode ou não autolimitar-se em face da perspectiva da responsabilização legal naqueles casos em que a matéria chegue a tangenciar os limites do ilícito.
De outro lado, quando veiculada a acusação e o atingido exerce democraticamente o direito de responder, contrapondo fatos e argumentos à notícia que o maltratou, quase sempre essa resposta não é divulgada por inteiro, voluntariamente. Publica-se, de ordinário, um "resumo", que nem sempre permite as explicações necessárias (a alegação é sempre a de que "falta espaço" para veicular a matéria por inteiro).
Além disso, logo abaixo da resposta publicada, normalmente surgem as incríveis "n. da r." (nota da redação), em que as denúncias são invariavelmente reforçadas, inovadas ou, no mínimo, reprisadas. Manifesta-se duas vezes o acusador e apenas uma quem se defende.
Tem, pois, a última palavra a acusação!
Desnecessário frisar que tal prática afronta noção elementar de legitimidade desse juízo público, no qual o acusado fica reduzido à impotência. Suprime-se-lhe o sagrado direito de redarguir, indicando tal uso inclinação à arrogância, à prepotência e ao arbítrio.
Sobre o direito de defesa que tem qualquer cidadão contra ataques públicos que venha a sofrer, eis um tema sobre o qual vale a pena refletir dentro do enfoque da ética da informação e da visão democrática, segundo a qual deve ter a imprensa ampla liberdade, com total responsabilidade. Com a palavra, agora e por último, a defesa!

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