São Paulo, sábado, 8 de janeiro de 1994
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É necessário trancar Nelson no teatro

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Espero que este ano –quando estamos pondo ordem no Legislativo e no Judiciário, depois de havermos completado a limpeza do Executivo– venha a ser aquele em que a obra de Nelson Rodrigues assuma seu lugar de grande clássico do teatro nacional. Só do teatro. No momento ela está dispersa demais pelos vários setores da vida do país. Encontramos impressões digitais de Nelson Rodrigues um pouco por toda parte.
No dia 24 de dezembro passado, Vicente Cimino, um construtor paulista, tinha ceia de Natal em casa. Recebia, ao lado da mulher Maria Tereza, os pais dela e mais um primo e dois sobrinhos. Vicente estava, como ficou estabelecido depois, bem disposto, alegre. Pouco antes de ser servida a refeição, Maria Tereza atendeu o telefone e ficou de palestra. Como essa conversa se estendia um pouco demais, Cimino foi ao armário onde guardava, escondido, um revólver, e começou, pela mulher, o extermínio. Depois de disparar, nela, dois tiros, atirou no sogro, na sogra e no sobrinho. No meio da chacina, e depois de carregar de novo a arma, baleou o primo, que aliás foi o único a escapar com vida, ou só com uma bala na barriga. A cena terminou naquilo: quatro mortos. Cimino então chamou a polícia pelo telefone e quando chegaram os policiais entregou a arma, entregou-se a si mesmo, com alívio, depois de informar, como quem não quer dar trabalho a ninguém: "Acabei de matar minha família."
Ao ler a terrível história e a tranquila confissão de Cimino pensei em Nelson Rodrigues, em alguma cena de peça que não me acudia logo à memória. Depois lembrei. Faltaram os disparos, é bem verdade, na espécie de extermínio da família realizado por Pedro Collor em meados de 1992, mas a destruição que ele promoveu foi igualmente radical. A figura mais frágil da família, ou a mais idosa, dona Leda, mergulhou, e nunca mais saiu, de uma mera imitação da vida. Não chegou sequer a ver a cena, tão Nelson Rodrigues, do deputado Ibsen Pinheiro –ou Ibsen Palhares, talvez dissesse Nelson– acabando de liquidar o corrupto Fernando Collor, já baleado dentro de casa, pelo irmão Pedro.
Assim, quando a gente pensa, diante de um crime comum como o de Vicente Cimino, que está se lembrando de alguma cena de peça de Nelson Rodrigues, está na verdade rememorando uma página da história política do Brasil. Quem achar que a confusão é indevida, ou exagerada, leia, ou releia "Passando a Limpo - A Trajetória de um Farsante", o livro em que Pedro Collor escreveu em parte a biografia do irmão Fernando e em parte sua própria autobiografia.
A crise dentro da família Collor é transcrita em termos de "Os Sete Gatinhos" ou "Senhora dos Afogados". Dos irmãos, Pedro só salva Ana Luiza. Os demais, Fernando, Leopoldo e Ledinha são todos da laia do já citado Palhares, o canalha de Nelson. Conta Pedro, acerca dos embates familiares que se seguiram às acusações que ele próprio fizera ao irmão e a PC Farias: "Leopoldo e Ledinha exigiam ainda de mamãe que as empresas pagassem a cada um deles US$ 10 mil por mês, a título de retirada por conta de lucros futuros. Mamãe não achava aquilo justo. (...) Por causa disso, Leopoldo teve uma pesada discussão com ela em São Paulo, agredindo-a com gritos e palavrões. De Brasília, Ledinha telefonava para minha mãe fazendo o mesmo tipo de exigência e em iguais termos grosseiros." Conversando com Ana Luiza, dona Leda lhe contou que os outros dois a haviam chamado de "empresária de merda". Pedro, aliás, só não concordou com a mãe quando esta pretendeu cortar-lhe os cartões de créditos. Ana Luiza, fiel como sempre, teria protestado: "Não é justo. Pedro vai viver de quê?."
A partir do momento em que dona Leda foi internada, em setembro de 1992, os choques familiares não só aumentaram como resultaram em diálogos de pura rodriguésia. Por causa da transferência de dona Leda para São Paulo, Ledinha "empurrou Ana Luiza contra a parede." O médico, "pressentindo a briga, colocou-se entre as duas, pedindo à embaixatriz que mantivesse a calma. Como Ledinha não atendesse aos apelos do médico, o doutor César exigiu: 'Me respeite, por favor!' Ledinha então voltou-se para ele e atacou: 'Me respeite o quê? Quem é você?' 'Sou o médico de dona Leda, respondeu indignado, continuando a exigir respeito, senão a ele, pelo menos ao ambiente hospitalar. Sem dar ouvidos, Ledinha voltou-se aos gritos para Ana Luiza: 'Você é uma complexada, uma despeitada!' 'Complexada, eu? Não... Despeitada até posso ser, como 35 milhões de brasileiros que votaram num presidente que comanda um governo corrupto do qual você faz parte, sua embaixatriz de merda!' " Em compensação, pouco depois, Leopoldo entra em cena contra Ana Luiza, no Hospital Albert Einstein. "Sem cumprimentar a irmã, disse logo, cheio de ironia: 'Quer dizer que você não queria que mamãe viesse para São Paulo, hein?' Ana Luiza ficou calada e Leopoldo então atacou: 'Você não pode decidir nada, você não é nada. Para mim, Ana Luiza, você vale tanto quanto o esgoto do rio Tietê.' Depois de acrescentar que em São Paulo quem mandava era ele e que ela não se metesse, encerrou o diálogo: 'Aqui, comigo, é na bala!' "
O penúltimo capítulo de "Passando a Limpo", intitulado "Delírios do Além", faz a gente pensar em "Boca de Ouro" e nos quadros que deixou Nelson da alta classe média brasileira. "Quis o destino que D. Leda mergulhasse em sono profundo dias antes da votação na Câmara dos Deputados que determinou, em 29 de setembro de 1992, o afastamento de Fernando Collor da Presidência".
Entre outras bênçãos, ao mergulhar nesse sono, deixou de saber que "o filho Fernando se submetia ao patético espetáculo dos rituais de magia negra na tentativa de manter-se no poder." Segundo um visitante da Casa da Dinda, citado no livro, o mordomo Berto não ocultava, antes talvez aprovasse, o que por lá ocorria: "Para comprovar, Berto abriu um dos 'freezers' da cozinha e mostrou várias cabeças de bode congeladas. Estavam ali desde a última 'sessão' para serem despachadas no dia seguinte. É que, segundo Berto, durante os rituais os animais eram sangrados vivos, sendo os restos conservados no gelo até o momento de serem jogados fora." Desses pormenores D. Leda não soube, mas quando, antes da sua crise, ouviu rumores a respeito das macumbas de Rosane, chamou logo o padre Joseph, um exorcista, para livrar a família de cargas negativas. "Padre Joseph atendeu ao pedido de minha mãe e, na presença de duas testemunhas, percorreu as dependências do Parque Guinle munido de um defumador e de um pêndulo de cristal. Em cada cômodo deixou copos com água e velas acesas e fez orações. (...) A uma dessas testemunhas padre Joseph especificou que a malignidade vinha da 'nora' de mamãe", isto é, dos bruxedos de Rosane na Casa da Dinda.
Não há dúvida de que a obra de Nelson Rodrigues, considerada de início "maldita", extravagante, fruto da mentalidade "doentia" do autor, foi aos poucos chegando a essa espécie de unanimidade de agora. Porque se confundiu, de forma quase misteriosa, com a própria história do país. No entanto, as obras que retratam uma nação, todo um povo, são em geral grandes e variadas, como a "Comédia Humana" de Balzac ou a coleção de romances de Dickens. O modelo de Nelson é obcecado, restrito. Seu "Vestido de Noiva" fica apertado demais para o país inteiro.

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