São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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A estética do "bom-gostismo"

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Certas pessoas têm dificuldade em sentir a poesia, daí dedicam-se a ensiná-la." Esta frase –dita por Jorge Luís Borges numa de suas célebres "Sete Noites" no teatro Coliseo de Buenos Aires em 1977– sempre me tocou muito, talvez por ter sido proferida por um autor tradicionalmente visto como cerebral ao extremo e pouco dado a sentimentalismos.
A fórmula me voltou à mente no último dia de 1993, à leitura do artigo "Barros tem sabor artificial de caipira", de Marcelo Coelho, na Ilustrada. Nele, Coelho "ensina" por "a" mais "b" por que a poesia de Manoel de Barros deve ser considerada uma fraude, concluindo que ela tem "sabor de galinha caipira de um Miojo de supermercado".
Como costuma acontecer nesses casos, o artigo em questão fala mais de seu autor do que do objeto a que se dedica –e é por isso que vale a pena comentá-lo aqui. Poucas vezes, nos três anos de colunismo de Marcelo Coelho na Ilustrada, ficou tão evidente o "bom-gostismo" que comanda suas avaliações estéticas.
Confesso que, no início, pensei que o problema de Coelho –um intelectual a quem respeito e admiro pelo brilho da inteligência e pela inteireza de caráter– fosse uma espécie de "ponto cego" com relação ao cinema, área em que seus comentários invariavelmente erram na mosca. Alguns exemplos célebres: dizer que "Cabo do Medo", de Scorsese, é pior, cinematograficamente, que "Misery", de Rob Reiner (o próprio Reiner enrubesceria se lesse isso), ou que "Não Matarás", de Kieslowski, é ruim porque os atores são feios e os cenários são sujos e escuros.
Com o tempo, porém, ficou claro que não se tratava de um caso de atrofia da visão, mas, muito mais grave, de uma limitação da sensibilidade. Não que Marcelo Coelho seja insensível. Longe disso. Leitor fiel de Flaubert, Gide, Valéry e Proust (de quem se diz fã "de carteirinha"), ele foi formado na mais refinada cultura européia, sobretudo francesa. Conhecedor de literatura, música, arquitetura, artes plásticas e sociologia, Coelho é o tipo do sujeito que as tias do interior apresentam a suas vizinhas dizendo: "Esse moço é um crânio".
Pode-se mesmo dizer que seu apego ao pensamento literário francês do fim do século 19 e início do 20 constituem sua maior vantagem –ao fornecer-lhe um ponto de vista sólido e respeitável– e, ao mesmo tempo, sua maior deficiência –ao impedir-lhe de admitir que existem outras maneiras de ver e sentir o mundo. É um pouco como se, diante de qualquer fato ou objeto novo, Marcelo Coelho se perguntasse: "O que é que Valéry e Proust diriam disso?"
Se este breve e superficial comentário sobre a atitude crítica de Coelho tem alguma validade, ela deve ajudar a entender por que o colunista tem dificuldade em apreender não só o cinema de Kieslowski, como também a música de Caetano Veloso, o teatro de Zé Celso e a arquitetura de Lina Bo Bardi.
Sua dificuldade, na verdade, é de aceitar qualquer modo de aproximação com a vida que não seja o racional-discursivo. É, talvez, um entrave –mais propriamente, uma trava– muito mais psicológico do que intelectual. Neste último campo, como já foi dito, não lhe falta munição.
Vamos acreditar que o leitor me concede pelo menos a "suspension of disbelief" necessária para me acompanhar até o fim, e voltemos a Manoel de Barros. Por que o artigo que Marcelo Coelho lhe dedicou (lhe "arremessou" seria mais preciso) trai seu, digamos, método crítico?
Em primeiro lugar, pela arbitrariedade. Coelho enumera inicialmente alguns achados do poeta que "não deixam de ser inventivos, ou bonitos", para em seguida citar suas "bobagens". O problema é que é difícil perceber a diferença entre uns e outros. Por que uma lagarta que sente "precisão de escuros para seu desmusgo" está na coluna dos méritos e a frase "adoecer de nós a natureza" foi relegada à dos deméritos? Pessoalmente, considero a segunda particularmente feliz, pela sua capacidade de condensação de uma idéia extremamente complexa –a de que a natureza se contamina da loucura humana ao ser filtrada pelos nossos olhos.
Em segundo lugar, por disfarçar a arbitrariedade, o puro capricho do gosto pessoal, com a máscara da objetividade e do equilíbrio. Qualificar de artifício pernicioso e fácil a transformação "de adjetivos em advérbios, verbos transitivos em intransitivos, substantivos em verbos" é condenar por atacado grande parte da poesia ocidental. Pelo mesmo critério, haveria que considerar "perniciosa e fácil" a criação, por Manoel Bandeira, do "verbo teadorar, intransitivo". Eliminem-se, por outro lado, "as puerilidades da sinestesia" e acabará quase toda a poesia simbolista.
Vista ao microscópio e sem um mínimo de generosidade, toda grande literatura, toda grande obra, tem em seu interior passagens "amadorísticas", "filosofias triviais", "banalidades". Por que escapa de ser considerada uma platitude uma frase como "Viver é muito perigoso", reiterada inúmeras vezes ao longo de "Grande Sertão: Veredas"? Porque, dirá um estudioso, é como um mero tijolo numa catedral, um motivo recorrente numa sinfonia etc. Mas o fato é que um crítico azedo, quando o livro foi lançado, poderia ter-se prendido a frases como essa para dizer que Rosa não passava de um tapeador –como, aliás, muita gente achava e alguns continuam achando. O mesmo vale para os famosos primeiros versos de "Os Lusíadas", de Camões, com a repetição insistente da rima "pobre" de verbos no particípio: "assinalados/ navegados/ esforçados" etc.
O que quero dizer é que a avaliação de uma obra depende muito da disposição prévia do crítico. Se ele quiser destruí-la, nada o impedirá de fazê-lo –nem mesmo a qualidade da obra em questão. Tomemos o "Hamlet" (de Shakespeare, não o do Zé Celso). O crítico poderia escrever:
"Um texto confuso, em que não se sabe se o protagonista é louco de verdade ou se finge sê-lo, e cujos buracos na trama são preenchidos por longos e tediosos monólogos em que despontam frases idiotas como 'Ser ou não ser, eis a questão' ou 'Há mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha sua filosofia'. Em certos momentos, para fazer avançar a ação, o autor chega a apelar ao artifício fácil de fazer aparecer um fantasma. Aparentemente sem saber que desfecho dar a seu estapafúrdio enredo, o autor coroa tudo com um dos finais mais ridículos da história do teatro, em que morre literalmente todo mundo, uns envenenados, outros feridos à espada. Em suma, o tipo do espetáculo que deve agradar uma classe média ociosa que nunca ouviu falar em Corneille e Racine."
São os perigos desse tipo de delirante arbitrariedade que, por gostar de Marcelo Coelho e admirá-lo, gostaria que ele evitasse em sua coluna.

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