São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Chiapas é região esquecida há 150 anos

PEDRO MIGUEL
DO "LA JORNADA"

Chú Castanon é um cosmopolita nascido em Chiapas. Há uns dez anos assisti ao seu casamento, com uma polonesa de olhos tristíssimos, em uma casa do 16.º distrito parisiense. Já embalado pelo licor de "cassis royale", descreveu-me sua infância enfadonha na fazenda de café do pai. Um dia, estava aborrecido. O pai lhe deu de presente um menino indígena para brincar. "Cuida dele! É seu", disse.
Chú, hoje cineasta famoso, nasceu nos anos 50, e o episódio deve ter acontecido na década seguinte. Na época o mundo vibrava com a beatlemania, soviéticos e norte-americanos se empenhavam na corrida para chegar à Lua. Na capital germinava o movimento estudantil de 68.
Não posso evitar um paralelo entre esse caso e a situação que começou há poucos dias: enquanto se trocavam os protocolos do Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio) –através do qual o México deve entrar no Primeiro Mundo–, milhares de índios de Chiapas, armados, tomaram os seis povoados principais da região conhecida como Los Altos, altiplano frio, uma espécie de "parque dos dinossauros" humano e econômico.
Lá, a posse da terra impõe uma servidão virtual aos camponeses. Lá, "criollos", mestiços e colonos de origem alemã herdaram o empenho conquistador de Pedro de Alvarado sobre os nativos. Lá, o universo social se divide de maneira nítida entre uma próspera sociedade ocidental agroexportadora e uma população miserável e marginalizada de aldeias milenares. Para muitos deles, o espanhol não chega sequer a ser a língua predominante.
Muitos telespectadores mexicanos não conseguem distinguir, entre as imagens do momento, as que chegam do Peru ou Nicarágua das que vêm de uma região de seu próprio país. Talvez se trate de mais uma "vinganças da história", no dizer de Hermann Tertsch, por ter tentado ignorar, durante mais de 150 anos, a origem centro-americana de Chiapas.
Agora, quando os movimentos de insurreição centro-americanos se dissolvem em um desespero regional e se enfatiza a construção de instituições democráticas e governáveis, as cenas de revoltas armadas ressurgem do lado de cá do rio Suchiate, que separa o México dos vizinhos ao sul.
O certo é que as transformações sociais provocadas pela Revolução Mexicana e pelos governos posteriores não foram perceptíveis em Chiapas. Entre outros motivos, porque a Revolução Mexicana não passou por lá.
A Reforma Agrária deixou intocados os latifúndios da região. As obras no setor de educação e saúde, desenvolvidas pelo Estado ao longo do século em quase todo o território nacional, foram freadas pela muralha cultural entre o México mestiço e os redutos indígenas, pelo próprio relevo e porque, uma vez estabelecido o regime central, seus aliados locais foram os caciques de sempre.
Mas essa revolta de fim de milênio responde a uma tradição profundamente mexicana, que não foi possível erradicar em mais de sete décadas de regimes revolucionários e institucionais. As revoltas camponesas, confundidas entre 1930 e 1950 com motins caudilhescos, tiveram expressão mais clara nos anos 60, em Morelos, com o movimento de Rubén Jaramillo e, nos 70, com as guerrilhas de Genaro Vázquez e Lucio Cabanas em Guerrero.
Além disso, a gênese nacional e local do confronto que se instalou em Chiapas era evidente, no ano passado, para quem quisesse ver. Em 1993, grupos de camponeses de várias regiões do país organizaram protestos por causa das dívidas com os bancos, que haviam dado crédito fácil a qualquer um. Depois o crédito encareceu e ficou impagável.
Adicionando a isso a queda dos preços mínimos, estabelecidos pelo Estado para os principais produtos agrícolas, centenas de milhares de homens do campo ficaram desesperados. A indignação rural diante dos abusos das autoridades policiais e judiciais federais provocou ondas de violência em Guerrero, Michoacán e Morelos –além de Chiapas.
Ao longo do ano, pelo menos quatro aldeias da região pegaram em armas, lincharam ou enforcaram representantes governamentais prepotentes e abusivos, fazendo justiça com as próprias mãos. Em Chiapas, correram versões, boatos e informações nos meios de comunicação sobre lutas entre camponeses e o Exército. O bispo de San Cristóbal de las Casas, Don Samuel Ruiz, denunciou abusos cometidos pelos militares.
Não quero terminar este artigo sem mencionar dois outros fatores. Primeiro, o descontentamento dos povos indígenas do México –assim como do Canadá e dos Estados Unidos– por não serem mencionados uma única vez no texto definitivo do Nafta, instrumento comercial visto com temor e desconfiança pelos setores sociais mais desprotegidos.
Segundo, os ultra-esquerdistas residuais –nem tantos quanto se imagina– que se negam a participar da difícil e incerta transição democrática e institucional do país. Eles parecem inspirar esta nova guerra por terra, trabalho, educação e saúde, em uma sociedade incapaz de oferecer tais direitos à população. De modo primário, os camponeses que hoje atraem a atenção nacional e internacional lutam para que suas crianças não sejam mais dadas de presente ao filho do fazendeiro.

Tradução de Lise Aron

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