São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1994
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Sentido estratégico do Mercosul

CELSO LAFER

Criado em 1991, o Mercosul é uma proposta de integração concebida no pós-Guerra Fria. Assim, se é certo que representa um aprofundamento do Tratado de 1988, celebrado entre a Argentina e o Brasil, não é menos verdade que inova substantivamente. Inova não apenas porque incorporou o Uruguai e o Paraguai, mas sobretudo porque agregou aos temas do desenvolvimento e da democracia, em sintonia com o que estava ocorrendo no mundo econômico, a preocupação com a modernização competitiva. Por isso mesmo constitui, no contexto latino-americano, uma nova visão de integração, distinta daquela derivada do modelo de substituição de importações, de que a Alalc, na sua origem, ou o Pacto Andino foram exemplos, pois não tem como objetivo um mercado ampliado protegido do mundo por barreiras tarifárias e não-tarifárias.
O Mercosul é, na verdade, uma plataforma de inserção competitiva numa economia mundial que simultaneamente se globaliza e se regionaliza em blocos. É igualmente um marco de referência democrática dos países que o integram para o "estar no mundo" das polaridades indefinidas do pós-Guerra Fria. Busca a liberalização dos entraves aos fatores produtivos para dentro e para fora do espaço econômico comum. Por isso tem a vocação de pólo aberto, não tendo, inclusive pela própria natureza de sua dimensão econômica, a possibilidade de ser um bloco ensimesmado, cabendo observar que o dinamismo do intercâmbio entre o Brasil e a Argentina, que o Mercosul estimulou, não exclui a condição de "global traders" de ambos. Neste sentido, pode-se apontar que, em 1992, do total importado pelo Brasil, 8,3% proveio da Argentina, que foi o mercado de 8,4% do total exportado pelo Brasil.
O Mercosul representa igualmente um esforço importante de compatibilizar a agenda interna e a agenda externa da modernização, que se tornou necessária para a Argentina e o Brasil dos anos 90, em função do esgotamento do modelo do Estado e da economia baseado na substituição de importações. O Mercosul contribui para viabilizar e compatibilizar interna e externamente a agenda de modernização porque tem como horizonte a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais. Este horizonte, com suas reverberações, dificuldades e assincronias (por exemplo: as dificuldades brasileiras no controle da inflação, os problemas da política cambial argentina), dá-se na moldura jurídica do Tratado de Assunção, que aproxima os atores representativos dos fatores de produção –os empresários e os trabalhadores– e os atores governamentais, num processo de negociação continuada.
Esse processo lida com temas heterogêneos, envolvendo assuntos que afetam, no plano interno, interesses distintos. É só pensar na variedade dos Subgrupos de Trabalho do Grupo-Mercado Comum que estão elaborando, em função do calendário de Las Lenas de 1992, o que virá a ser o tratado definitivo do Mercosul. Por esse motivo, uma diplomacia de integração tem características próprias, instigadoras de uma profundidade no relacionamento de suas partes contratantes. Instaura, por força da lealdade entre os membros do processo, limites à saída dos parâmetros de sua concepção. Em compensação, amplia os mecanismos da voz, promovendo permanente discussão dos interesses em jogo. Esta é, aliás, a lição da experiência européia, que dirime as controvérsias no âmbito da Comunidade, não as levando à instância do Gatt.
Numa proposta de integração, como o Mercosul, concebida como um pólo aberto, um dos temas básicos da voz, ao se tratar do programa de liberação comercial que enseja o acesso aos mercados, é o das condições de concorrência. É natural, portanto, que a implementação do Mercosul suscite debates sobre este assunto.
Neste debate menciona-se, por vezes, do lado do setor industrial argentino, a existência, em relação ao Brasil, de níveis assimétricos de produção e consumo. Registre-se preliminarmente que todo processo de integração aproxima economias que não são idênticas. É só evocar as diferenças que separam as economias dos Estados-membros da Comunidade Européia, cabendo recordar que a convergência da França e da Alemanha, que está na base do Mercado Comum, teve como ponto de partida economias diferenciadas, que continuam distintas mas que se beneficiaram, no correr do processo, de ganhos excepcionais.
No caso da Argentina e do Brasil, no âmbito do Mercosul, os dados recentes mostram um intercâmbio que não justifica as apreensões argentinas. As manufaturas de origem industrial tiveram, nos primeiros sete meses de 1993, participação de 34,4% nas vendas da Argentina para o Brasil, enquanto representaram apenas 24% das exportações para o resto do mundo. Aumentaram, de 1992 para 1993 (janeiro-julho) 77,6% (de US$ 290 milhões para US$ 514,9 milhões) as exportações industriais argentinas para o Brasil, com acréscimos significativos nas principais rubricas: material de transporte (+157,4%); máquinas, aparelhos e material elétrico (+60,9%); têxteis (+101,5%); produtos químicos (+23,5%); metais e suas manufaturas (+23,0%) e materiais plásticos artificiais (+33,2%).
Em contraste, as importações argentinas oriundas do Brasil permaneceram no patamar de 1992, registrando aumento de apenas 3,4%. Por isso, o saldo negativo argentino, na balança comercial bilateral, diminuiu dos US$ 1.053 milhões dos primeiros sete meses de 1992 para US$ 362 milhões no mesmo período de 1993. É neste contexto, aliás, de um aumento das exportações argentinas para o Brasil da ordem de 100% nos sete primeiros meses de 1993, quando comparado com o mesmo período de 1992, que se sente, do lado brasileiro, inquietação com a imposição de quotas para exportações brasileiras (congeladores verticais, horizontais, isoladores de porcelana, por exemplo); receios quanto à possibilidade de imposição de direitos antidumping para uma série de produtos (por exemplo, PVC e soda cáustica), e aflição com as licenças especiais de importação com tarifas diferenciadas do programa argentino de reconversão industrial.
Esses debates, com suas respectivas trocas de números e argumentos, aos quais se agregam as dificuldades já explicitadas da negociação da tarifa externa comum, são importantes para assegurar a transparência do mercado que, como a transparência da democracia, constitui um dos ingredientes básicos da concepção do Mercosul. Penso que, com as suas idas e vindas, indicam, no varejo das conjunturas, o acerto, no atacado, da "vis directiva" do Tratado de Assunção, sumariado no início deste artigo, como um caminho estratégico para a Argentina e o Brasil encontrarem o seu lugar no mundo das polaridades indefinidas da década de 90.

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