São Paulo, segunda-feira, 10 de janeiro de 1994
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A CPI

FLORESTAN FERNANDES

A Comissão Parlamentar de Inquérito já foi além de seus limites. De fato, bem ponderadas as coisas, quem sai mal não é somente o Legislativo. Todos os três poderes e órgãos fiscalizadores da ação pública revelaram sua verdadeira face. São marionetes da iniciativa privada nacional e estrangeira. Neles a corrupção aparece dispersa ou concentrada, dependendo do tamanho do botim a ser repartido e da facilidade da empreitada. O universo abrangido não compreende todos os atores do Poder Público –nem poderia. Mas os agentes da iniciativa privada operam com uma desenvoltura de mercadores, misturando papéis que não deveriam medrar dissoluta e arraigadamente. O núcleo inteligente e hegemônico, porém, compõe-se de empresários poderosos e de empresas gigantes.
Cai o véu da "pureza" e do "espírito criativo" da iniciativa privada. Ela deturpa e corrói o Estado como um todo e os governos em particular. Sua estratégia consiste em debilitá-los nas sombras, para arrasar sua autonomia e invadir suas funções. O fito é claro: conquistar vantagens permanentes, em todas as esferas, mas principalmente nas da riqueza pública e do poder estatal. Como consequência, ela arruína as probabilidades de realização e de autodefesa deste último. Promove a acusação do Estado, proclamando com insistência os altos custos que o envolvem, sua ineficácia e o imperativo primordial de "privatizá-lo", em suas funções e nas instituições estatais e governamentais que prestem "serviços sociais". A receita vem certeira: acabar com a "intervenção do Estado", que bem ou mal produziu a infraestrutura da economia, da sociedade e da cultura, e conferir-se a si própria como alternativa de poder.
A CPI não pode, pois, restringir-se ao Legislativo. Isso seria o mesmo que aceitar um atestado de covardia e cumplicidade. Desencadeado o processo, ele precisa ir até o fundo e até ao fim da podridão, mesmo às custas de sacrificar outras atividades essenciais do Parlamento ou de organizá-las de outra maneira. Além disso, tem de estender-se aos demais núcleos contaminados do Estado, dos governos (federal, estadual e municipal) e da economia. Seria ingenuidade exigir-se a reforma do Estado sem passar por essa "via crucis". A limpeza de um dia cederia lugar à devassidão ainda maior do dia seguinte. E a reforma do Estado seria engolfada por uma sanha mais perniciosa e demolidora.
O senador Jarbas Passarinho e o deputado Roberto Magalhães, a mesa diretora e os membros da comissão procuram combinar serenidade e justiça. Buscam colocar o Congresso Nacional acima de suspeitas e de injúrias. É o mínimo que podem assegurar aos denunciados, cuja culpabilidade se encontra em apuração. Mas todos eles têm de obedecer ao significado adquirido pela CPI, de punição exemplar de corruptores e de corrompidos. A sociedade civil exige esse ponto de partida mínimo para a reforma do Estado e a construção da democracia.

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