São Paulo, segunda-feira, 10 de janeiro de 1994
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Reforma do Estado: as lições do transporte

ALBERTO GOLDMAN

Até os anos 70, implantou-se no Brasil uma vasta e complexa estrutura de transportes, base do vigoroso crescimento pelo qual passou o país. Nessa implantação, o Estado brasileiro desempenhou a função de agente dinâmico, sobretudo a partir do surto desenvolvimentista da década de 50. No entanto, a partir do final do ciclo militar e, principalmente, com a Constituição de 88, o poder público foi perdendo sua capacidade de intervenção no setor.
Disso resultou um processo de sucateamento do patrimônio público e degradação dos sistemas, além de grande número de obras inacabadas, concebidas para um fantasioso cenário de crescimento auto-sustentado. Essas, não raro, decorreram de decisões ditadas por interesses de grandes cartéis empresariais que determinavam a obra, seu porte, sua localização e, até mesmo, seu custo.
Quando assumi o Ministério dos Transportes, há 14 meses, havia um enorme desafio: de um lado, sustar a degradação dos sistemas, apesar do quadro de recursos restritos; de outro, preparar o setor para as exigências do futuro, desenhando-lhe um novo modelo institucional. Essa tarefa foi, de início, balisada por quatro diretrizes:
1) Alavancar recursos através do aumento do imposto de importação de petróleo, medida de resultados limitados diante das artimanhas da Petrobrás, um poder autônomo no país;
2) Concentrar recursos na manutenção e restauração de rodovias, ferrovias e portos;
3) Reduzir custos pela transformação das licitações tradicionais em verdadeiras concorrências entre empresas, o que permitiu serem alcançadas, normalmente, reduções de 20%, 40% e até 50% nos preços, como ocorrido na licitação da rodovia Fernão Dias;
4) Otimizar recursos, reduzir desperdícios, concluindo obras em fase final, não iniciando novas, a não ser aquelas de ampliações de capacidade, indispensáveis à fluidez e segurança do tráfego.
Mas foi no plano estratégico, cremos, que o Ministério melhor definiu os contornos futuros do setor: enfrentando entraves burocráticos, a cultura saudosista e, mesmo, a indefinição do conjunto do governo, lançou-se um ambicioso programa de concessões, de privatização de serviços, essenciais à preservação e à ampliação de um patrimônio vital à economia do país. Esse projeto significa uma profunda reformulação do papel do Estado no setor: ele deixa, progressivamente, de ser um produtor de serviços para se concentrar e fortalecer seu papel de poder concedente, normativo, fiscalizador, indutor e articulador.
Daí resultaram a recuperação de mais de 6.000 km de rodovias e a licitação da Fernão Dias (com preços reduzidos em 50%), cuja ampliação será iniciada já no primeiro trimestre de 1994. Para a ligação São Paulo - Curitiba - Florianópolis já está definido um esquema financeiro original, envolvendo a tríplice participação do BID, dos governos federal e estaduais e da iniciativa privada. De um total de 8.000 km, cerca de 2.800 km de rodovias estão sendo licitados para concessão ao setor privado, incluindo-se, aí, a rodovia Presidente Dutra e a ponte Rio-Niterói.
Foi aprovada e está em estágio avançado de implantação a nova "lei dos portos", além de estarem em licitação, para concessão, um primeiro grupo de quatro portos. A RFFSA bateu este ano o recorde histórico de 1986 (ano do Plano Cruzado) de transporte de carga. Os trens urbanos de São Paulo e do Rio de Janeiro estão sendo modernizados e serão finalmente transferidos para os respectivos Estados. Foi elaborada e negociada, com os fóruns de prefeitos e secretários, entidades empresariais e de usuários, uma nova "planilha de custos", que poderá propiciar reduções tarifárias nos transportes urbanos. Foi ainda retomado o projeto de corredores, reestruturado o FMM (Fundo de Marinha Mercante) e contornada a profunda crise do Lloyd, iniciando-se um saneamento com vistas à privatização.
Adotando-se como método a transparência e a participação, está em implantação nova regulamentação para o transporte rodoviário de passageiros, rompendo-se cartéis, reservas de mercado e privilégios; foi lançado o Pare (Programa de Redução de Acidentes nas Estradas), o programa de revitalização de áreas portuárias e ferroviárias e criado o CNTU (Conselho Nacional de Transportes Urbanos).
Não devem ser esquecidas as dificuldades do quadro político no qual essas transformações ocorreram: crises, ameaças de ruptura de apoio partidário, mudanças ministeriais, particularmente na área econômica. Esta nunca pode assegurar horizonte financeiro de pelo menos 30 dias, além de impor, sucessivamente, cortes e retenção de recursos. Ainda assim, desde fevereiro, foi evitado todo e qualquer atraso nos pagamentos, recuperando-se a credibilidade do Ministério, fator essencial à redução dos preços obtidos nas concorrências públicas.
Apesar do tempo curto, foi possível ir além dos diagnósticos e lançar bases para redirecionar o setor de transportes nacional, visando capacitá-lo a responder às demandas de um novo ciclo de desenvolvimento do país. Além disso, estamos convencidos, essa atuação tem aspectos generalizáveis, e pode ajudar a delinear uma linha a ser adotada para a necessária reforma do Estado brasileiro.

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