São Paulo, segunda-feira, 10 de janeiro de 1994
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Brasil-EUA: uma agenda para tempos democráticos

PAULO TARSO FLECHA DE LIMA

Brasil e Estados Unidos são hoje as duas maiores democracias do mundo ocidental. Creio que essa é a convergência fundamental que deve orientar a agenda do relacionamento bilateral. Na verdade, é porque convergimos nas escolhas essenciais de nossas sociedades que estou convencido de que as relações entre os dois países tendem a ser marcadas sobretudo pelo aprofundamento da cooperação.
Na linha do que aponta o chanceler Celso Amorim em artigo recentemente publicado pela imprensa, considero um paradoxo que se perceba o relacionamento entre Brasil e Estados Unidos como tendo mudado para pior desde os anos 70. A realidade é que Brasil e Estados Unidos partilham hoje uma série de valores –direitos humanos, democracia, economia de mercado, não-proliferação de armas de destruição em massa, etc.– que os aproximam muito mais do que em qualquer momento dos últimos 20 anos.
Esse paradoxo se manifesta de forma particularmente curiosa na imprensa dos dois países, onde identifico o que chamaria de mecanismo de causação circular. Esse mecanismo funciona da seguinte forma: graças ao clima de total transparência democrática em que vivemos, os jornais brasileiros publicam diariamente notícias dando conta dos nossos problemas. Essas mesmas notícias, traduzidas para o inglês, servem de base para matérias publicadas em jornais norte-americanos, as quais, vertidas para o português e publicadas novamente, são lidas como uma espécie de confirmação da gravidade de nossos problemas.
Além de sua óbvia fragilidade metodológica, estou certo de que as conclusões a que esse mecanismos tem levado são errôneas. Os escândalos divulgados pela imprensa não são a prova da crise da democracia ou, muito menos, como quis recentemente um jornal norte-americano, a comprovação de uma falta de padrão ético no Brasil. Ao contrário, conforme tenho deixado claro em meus contatos com a imprensa norte-americana, a veiculação dessas notícias e a mobilização nacional por elas causada são uma vigorosa demonstração de que o povo brasileiro exige de seus homens públicos conduta ilibada e de que a democracia brasileira está consolidada.
O Brasil é um país de perfil próprio, com relevância indiscutível e que tem aspirações próprias. A profundidade do processo de aperfeiçoamento institucional que, pacífica e democraticamente a sociedade brasileira está levando adiante, não poderia deixar de suscitar o interesse da comunidade internacional. O fato de que haja notícias sobre o Brasil, boas ou ruins, deve ser visto como a contrapartida indissociável de nossa relevância, não como um sinal de deterioração de nossa imagem externa.
Com olhar sereno, e deixando-se de lado a paixão que caracteriza cada um de nós em sua urgência por ver um país melhor, o Brasil de hoje só pode inspirar otimismo e orgulho. Sem traumas, sem rupturas, e sob uma permanente preocupação de preservação democrática, o processo de reformas estruturais em curso reflete alguns consensos básicos da sociedade brasileira. Na área política, não são mais aceitáveis as soluções autoritárias. Na área econômica, vamos mudando nosso padrão de desenvolvimento para adaptá-lo a uma nova fase da economia mundial. Todas essas mudanças, acima e além das agruras do cotidiano, vão desenhando um país melhor, uma sociedade mais coesa, uma nação mais justa.
É essa mensagem de otimismo e essa visão do Brasil que tenho tentado mostrar aos meus interlocutores norte-americanos nesse primeiro mês de minha atividade como embaixador do Brasil em Washington.
Já nesses primeiros dias de trabalho, tenho identificado uma série de áreas onde as convergências e a mutualidade de interesses são indiscutíveis. Com base em intensos contatos com representantes da sociedade civil norte-americana, tenho procurado chamar a atenção para o grande contingente de interesses partilhados, buscando estabelecer uma base interna de sustentação política que reforce nossa posição no diálogo bilateral. A rigor, são precisamente os setores que dão densidade a esse relacionamento que nos devem dar respaldo político interno em nossas conversas com o governo norte-americano.
Nesse campo, permito-me recorrer à memória de Araújo Castro, que, em 1973, declarava que as relações entre Brasil e Estados Unidos eram relações que se deviam desenvolver de Estado a Estado. Decorridos 20 anos, esse é um diagnóstico que continua válido, mas que admite ser ampliado.
A evolução das últimas décadas trouxe à cena política uma série de novos atores. Hoje, se as relações são de Estado a Estado, elas também devem ser de sociedade a sociedade. Por isso meu empenho em encontrar, na sociedade civil, amigos do Brasil. Amigos que percebam que os interesses de longo prazo no Brasil superam as dificuldades do cotidiano, e que, em meio ao processo de transformação, saibam valorizar o país que estamos construindo.

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