São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 1994
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Uma moratória com a utopia

TARSO GENRO

As radicais transformações no processo do trabalho, os indícios claros da cristalização do desemprego estrutural nas sociedades avançadas, a tendência de que a classe operária da grande indústria –originária da Segunda Revolução Industrial– torne-se cada vez mais obsoleta e corporativa, o surgimento de um mundo do trabalho cada vez mais complexo e estruturado em organizações produtivas horizontais, bem como a "privatização" cada vez maior das emoções, face aos novos sistemas de informação e comunicações, constituem as novas bases históricas para pensar a "praxis" socialista.
Essa nova situação mundial coloca-me, hoje, numa postura de lutar abertamente pelo "rebaixamento" de um programa da esquerda, para enfrentar a barbárie e o "apartheid" social. Baseio-me, para isso, nas lições empíricas da vida e nos indicativos de três grandes cabeças destes dois últimos séculos: Marx, que analisou a humanidade a partir de uma concepção de história universal, instaurada por Hegel, mostrando que os pólos mais avançados da humanidade é que podem mediar a reflexão política sobre o futuro; Keynes, que além de adiantar, na década de 30, a questão do desemprego estrutural, desmontou as certezas liberais de Adam Smith, colocando o Estado também como um agente indutor do desenvolvimento; e Bobbio, que integrou o ceticismo na avaliação do cidadão moderno e propôs os fundamentos normativos de um Estado democrático, que deve ser dotado de normas heterônomas para mediar os conflitos de interesse numa sociedade complexa.
É impossível pensarmos o futuro fora das relações econômicas e políticas internacionais e alheios a um projeto de indução racional da atividade privada. É impossível pensar a democracia fora de uma profunda reforma do Estado brasileiro, que distinga radicalmente o público e o estatal, cuja confusão só interessa aos oligopólios e ao sindicalismo corporativista. O que é estatal nem sempre defende o interesse público, e este é a medida da afirmação da cidadania.
O caso da CMTC é emblemático, porque raras vezes um fato empírico casou tão diretamente com a crise da teoria. Apenas para lembrar a cegueira de valores políticos a que chegaram determinados setores operários, é bom lembrar que os trabalhadores dessa empresa vanguardearam o seu sucateamento durante o governo Erundina. E esse governo defendia a viabilização da CMTC, como empresa pública modelo. O sindicato jamais colocou em debate um milímetro sequer do interesse da população, transformando a sua luta corporativa num centro de desgaste de um governo que precisamente defendia o Estado como protagonista de atividades essenciais.
Mas o que chamo de rebaixamento do programa é, na verdade, uma proposta de "moratória com a utopia", através da formação de um novo "bloco histórico". Ele deve comportar a unidade a partir da democracia e da reforma, e não mais um bloco que pressuponha um "programa de transição" para o socialismo. Isso pelo simples e concreto fato que os paradigmas universais, para um projeto socialista democrático, não existem, nem na teoria, nem na prática; nem nos países desenvolvidos, nem nos atrasados. A menos que se pense que a Coréia do Norte seja algo mais do que um fascismo hereditário adornado com frases stalinistas.
Esse novo pólo democrático e reformador será formado no primeiro ou no segundo turno das eleições presidenciais, ou de forma oportunista, indefinida, espontânea, ou de forma pensada, sincera, programática, se pensado desde agora. Sua necessidade parte do reconhecimento da importância mundial, do que ocorrerá no país, com a possível eleição de Lula. Advém, igualmente, do reconhecimento da pertinência da democracia como valor universal (com suas formas históricas específicas) e do reconhecimento que a revolução microeletrônica deve ter a mesma força transformadora, nos ideais socialistas, que teve a segunda revolução industrial em relação ao socialismo utópico.
Por isso é necessário compreender que nunca estivemos tão longe da emancipação e tão perto da afirmação da barbárie irretornável, o que exige um novo período de elaboração teórico-filosófica e medidas, ao mesmo tempo estratégicas e emergenciais, contra a desagregação, atomização, falência do Estado e contra a instauração de uma "democracia" bonapartista "eficaz", à semelhança do que ocorre na Rússia e no Peru.
Se a esquerda não tiver a humildade de reconhecer, hoje, que não tem um projeto socialista capaz de seduzir e hegemonizar, pela democracia, uma ampla maioria capaz de sustentá-la no poder através de um "consenso majoritário", demonstrará que está cega perante a situação mundial e a profunda crise teórica da nossa geração.
Ao contrário, se soubermos dar um rumo para o nosso país, que tenha como objeto um processo de desenvolvimento sustentado, a eliminação da miséria doentia para patamares de pobreza decente, abrindo novas perspectivas para a formação de uma cidadania participativa e democrática –se soubermos fazer isso–, a utopia modesta poderá servir de base para pensarmos uma nova utopia emancipatória.

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