São Paulo, quinta-feira, 13 de janeiro de 1994
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Por um contrato de representação política

ANTONIO KANDIR

O escândalo do Orçamento revelou o quanto a crise do Estado brasileiro está ligada a um certo padrão de representação política. Engano imaginar que se trata de problema exclusivo de algumas regiões do país. Embora desigualmente distribuído, a apropriação privada do mandato popular é um problema nacional.
Esse problema tem causas estruturais profundas, que se vinculam à relação histórica das elites brasileiras com o Estado e suas clientelas eleitorais, e ganha características específicas, agora conhecidas, em virtude dos resquícios da centralização do regime autoritário e da vigência de uma legislação partidária e eleitoral que confere autonomia excessiva aos políticos, em relação ao eleitorado e aos partidos.
No padrão tradicional da representação política brasileira, o mandato popular não constitui uma autorização condicionada ao cumprimento de compromissos firmados com os eleitores e avalizados pelo partido ao qual se pertence, mas um instrumento a ser manejado segundo os interesses pessoais e políticos do suposto "dono" do mandato, à custa do caráter público do Estado, da credibilidade na moeda nacional e da qualidade de vida da grande maioria dos brasileiros.
Não se pode melhorar a qualidade de vida por decreto. A melhoria da qualidade de vida depende fundamentalmente do crescimento da renda, do emprego e do gasto público na área social. Renda, emprego e gasto público, por sua vez, só podem crescer se houver investimentos. A retomada dos investimentos depende de um grande número de fatores, mas é certo que não ocorrerá enquanto não houver estabilidade econômica, isto é, enquanto a inflação não for debelada.
A inflação, por seu turno, mesmo que venha a cair temporariamente, voltará a nos perturbar enquanto não se alcançar um equilíbrio estrutural das contas públicas, equilíbrio impossível de ser alcançado se o Estado não for reconstruído em novas bases. Um novo Estado depende, por fim, de um novo padrão de representação política.
Dizer que a representação política deve obedecer ao princípio da honestidade é dizer pouco. A honestidade é apenas pressuposto. A representação política democrática deve obedecer ao princípio de "accountability". Mal traduzindo, "accountability" significa o seguinte: "quem tem ou pretende ter poder deve assumir compromissos e responder por eles, deve prestar contas do que faz ou pretende fazer".
Não me refiro à "accountability" por extravagância. O fato de não haver tradução exata do termo para o português está longe de ser acidental. A ausência de tradução exata indica quão pouco a nossa cultura política está impregnada dessa noção fundamental da representação democrática. Em suma, a falta do vocábulo é expressão da falta de vigência prática do conceito.
Está aí um dos problemas centrais da consolidação democrática. Vale lembrar que toda a retórica autoritária –tome-se os pensadores italianos e alemães do começo dos anos 20 e 30, seus filhotes nacionais ou Lênin e seus epígonos– fere sempre a mesma tecla: a representação democrática é uma farsa, a ser substituída pela representação do povo na figura do chefe, no caso dos primeiros, ou pela liderança clarividente do partido do proletariado.
Empenhar-se para fortalecer o caráter democrático da representação política, no plano prático e no plano das idéias, é por isso de grande importância.
Na minha visão, a representação política deve assentar-se numa espécie de contrato. Nesse contrato, o candidato firma compromissos públicos com os que venham a elegê-lo, compromissos esses avalizados pelo partido a que pertence. No momento em que firma esses compromissos, obriga-se a respeitá-los no transcurso do mandato e a justificar-se, se deles se afastar, sujeitando-se à cobrança de seus representados. Estes, por sua vez, podem vir a rescindir o contrato, não o reelegendo, na hipótese de descumprimento injustificado dos compromissos firmados ou de mau desempenho na defesa dos mesmos.
Desnecessário dizer que os compromissos assumidos não fazem do representante um autômato. A política é um jogo interativo afetado pelas circunstâncias. Por isso os compromissos devem ser interpretados não como um "indexador" do comportamento parlamentar do representante em cada caso concreto, mas como parâmetros a orientar-lhe a ação política de modo permanente.
Por certo a ampliação da vigência prática da noção de "accountability" não depende apenas da vontade subjetiva de cada candidato. Depende sobretudo de um processo duplo e interligado de fortalecimento do controle social e de aperfeiçoamento dos mecanismos institucionais, tipicamente as legislações partidária e eleitoral.
Com todas as suas contradições, a transição democrática deflagrou esse processo, permitindo, quando mais não seja, que as mazelas das formas arcaicas de representação venham à tona. Trata-se agora de avançar nesse processo de depuração, sem ceder a tolas tentações autoritárias, criando as bases de uma mudança radical e duradoura na política brasileira.

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