São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Negociando a extinção da fome

JOSÉ ELI DA VEIGA

A sociedade e o sistema agroalimentar precisam fazer um contrato para diminuir a fome no país
Quase a metade dos brasileiros já se envolveu diretamente na campanha da cidadania contra a fome, segundo os resultados das pesquisas do Datafolha e do Ibope. Trata-se, portanto, de um movimento sem paralelo em nossa história. E uma de suas principais qualidades está no fato de não apontar vilões. Em vez de acusar tubarões, latifundíários, banqueiros, entreguistas, patrões, elites, governantes, classes dominantes, etc., como os responsáveis pela fome de 32 milhões de pessoas, Betinho e seus colaboradores têm se dedicado, ao contrário, a um sereno trabalho de pregação junto a todos esses segmentos sociais. Não se cansam de repetir que a responsabilidade é de cada um de nós e que, por isso mesmo, a erradicação da fome dependerá da ação sinérgica do conjunto da sociedade.
Nada impede, entretanto, que alguns setores se sintam obrigados a apresentar uma espécie de defesa cautelar, procurando nos convencer de que estão fazendo sua parte, com muito sacrifício e eficiência. Em vez de aproveitarem a energia positiva da maré que vem sendo criada pela Ação da Cidadania, tentam pegar uma mesquinha carona para fazer mais propaganda de suas reivindicações específicas. E o mais curioso é que acabam por oferecer preciosas manifestações de cunho puramente ideológico, cujo melhor exemplo é, sem dúvida, o discurso ultimamente repetido pelas principais lideranças do agribusiness.
De cara, lembram que todo ano o setor produz o equivalente a 930 kg de alimentos "per capita", o que daria um consumo estimado de 2,8 kg por habitante/dia, suficiente para que todos passassem muito bem, caso a distribuição não fosse tão desigual. Não estão isolados, neste ponto, pois o próprio "Mapa da Fome" do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que muito ajudou a campanha, traz idêntico raciocínio. O problema é que, hoje em dia, qualquer aluno de colegial aprende que não há sentido em dividir a produção bruta pelo número de indivíduos. O que faz algum sentido, mas exige um pouco mais de cálculo, é estimar a "disponibilidade" de alimentos. E esta, lamentavelmente, apresenta resultados bem diferentes, como demonstram os trabalhos do pesquisador científico do Iea/Saa-SP, Flávio C. de Carvalho. Em termos calóricos, essa disponibilidade não mais voltou ao nível de 2.558 Kcal/"per capita"/dia, que havia sido atingido em 1980. Nos últimos 12 anos, tem oscilado em torno de um patamar 10% inferior, o que parece indicar que a oferta de alimentos tende a se adequar à uma demanda fortemente reprimida (1).
Em seguida, o discurso ruralista afirma que os produtores têm sido vítimas de um quadro "chocantemente paradoxal" (sic). Isto porque, malgrado inúmeros percalços, incorporaram tecnologia, alevaram a produtividade, mas receberam, como "prêmio", uma queda brutal dos preços agrícolas nos últimos dez anos. Aqui, não existe apenas um, mas dois problemas. Primeiro, nada pode haver de paradoxal quando os preços diminuem por efeito dos ganhos de produtividade. Se assim não fosse, paradoxais seriam, sim, os gastos públicos em pesquisa, extensão, educação, crédito, preços mínimos, estocagem, estradas, etc. Depois essa tão falada derrocada dos preços agrícolas precisa ser examinada com mais cuidado. Ela pode ser mesmo "chocante" quando se compara 1991 a 1981. Mas, quando se compara o nível médio dos anos 80, ao nível médio dos anos 70, o tiro pode sair pela culatra. Nota-se uma pequena elevação se o deflator for o IGP, mas bem significativa se o deflator for menos precário (1).
O terceiro capítulo da homilia rural consiste na lamentação pela queda do consumo de alimentos que estaria sendo provocada pela redução do poder aquisitivo. Outra vez, as estatísticas não confirmam. Os dados da Federação do Comércio de São Paulo indicam quedas nas vendas dos açougues e feiras, acompanhadas por um aumento das compras de alimentos em supermercados. No total acusam, ao contrário do que afirmam os agrolobistas, pequenas elevações do consumo alimentar. E a indústria de alimentos teve crescimento superior a 4% em 1993, segundo os dados da Abia. Ou seja, quem tem renda, pode até gastar menos em outras coisas, mas procura garantir o sustento da família.
Após a apresentação desses três mambembes silogismos, os expoentes do setor costumam fechar o cerco com a seguinte pérola: o fator determinante da fome não é a produção agrícola, mas a péssima distribuição de renda do país. Quem haveria de duvidar? É óbvio que não. Neste caso, a pergunta que deve ser feita é se uma melhoria da distribuição de renda seria assim tão independente da produção agrícola, como querem os representantes do agronegócio. A experiência dos países que conseguiram se desenvolver ensina que os períodos de maior districuição da renda real foram justamente os períodos de maior barateamento alimentar, causado pela abundância da oferta de alimentos (2). No Brasil, ao contráro, o preço da comida continua elevado porque a oferta de alimentos tende a empatar com a demanda reprimida. Nestas condições, qualquer elevação dos salários nominais dos que ganham menos poderá ser imediatamente anulada pela elevação do custo da alimentação.
O que mais interessa, contudo, é a reivindicação que decorre naturalmente dessa defesa cautelar que tem sido divulgada pelo "food lobby": seus líderes agora pedem mais subsídios ao consumo de alimentos. Aqui, também, não há como discordar. A sociedade brasileira terá de expandir os subsídios ao consumo de alimentos se quiser mesmo acabar com a fome e induzir distribuição da renda real. Desta vez, o problema é saber qual será a consequência imediata de um maior subsídio ao consumo. Se vier a provocar novos aumentos dos preços alimentares, estará servindo é para piorar a distribuição de renda, pois é somente entre os pobres que a alimentação tem muito peso no custo de vida. Por tabela estará reduzindo o potencial de consumo de outros bens, cuja fabricação pode ter decisiva para a retomada do crescimento econômico.
Em resumo, é certo que vamos ter de ampliar os subsídios, não só ao consumo de alimentos, como também à sua produção, escoamento e distribuição. Mas isto exigirá a negociação de um contrato entre a sociedade e o sistema agroalimentar, segundo o qual a primeira garantirá renda aos produtores e comerciantes do referido sistema, desde que estes garantam, em contrapartida, um abastecimento alimentar farto e barato.
O atual discurso do representante do agribusiness é um forte indício de que ainda não amadureceram as condições subjetivas necessárias ao estabelecimento desse tipo de contrato social. Mas essas condições talvez surjam como resultado involuntário da iniciativa proposta pelo "governo paralelo" de Luis Inácio Lula da Silva, aceita pelo presidente Itamar Franco ao criar o Consea, e levada às ruas, com muita generosidade e sabedoria, por esse anjo que resolveu encarnar no ex-carbonário Herbert de Souza. Se essa campanha criar condições propícias ao estabelecimento do referido contrato, terá conseguido um resultado de inestimável importância histórica.
1) Os dados de apoio às interpretações contidas neste artigo estão no boletim "Informações Fipe", edição de janeiro de 1993.
2) As evidências que apoiam esta afirmação estão nas seguintes publicações: "O Desenvolvimento Agrícola, uma visão histórica"
(Edusp/Hucitec, 1991) e "Metamorfoses da Política Agrícola dos Estados Unidos" (Tese de Livre Docência, FEA/USP, 1993).

Texto Anterior: Desafios da agroindústria paulista
Próximo Texto: Que sociedade civil é esta?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.