São Paulo, domingo, 16 de janeiro de 1994
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Que sociedade civil é esta?

LUÍS NASSIF

A sociedade civil organizada –OAB, ABI, CNBB– reuniu-se e lançou um manifesto condenando a revisão constitucional e aqueles que a defendem.
Como membro da sociedade civil, com o devido respeito às entidades que subscreveram o documento, informo que não assinei nenhuma procuração autorizando-as a falar em meu nome. E não conheço pessoa alguma que, concordando ou não, tivesse autorizado-as expressamente a representá-los.
Minha procuração foi dada ao deputado federal, ao deputado estadual e ao senador nos quais votei nas últimas eleições.
Por isso mesmo, é bom acabar com este anacronismo de se passar por representantes da sociedade civil. O Brasil já é uma sociedade suficientemente moderna e diversificada para prescindir da figura dos condutores de povos em torno de propostas fechadas.
Entende-se por sociedade civil o conjunto de cidadãos e contribuintes unidos em torno de interesses comuns. Um advogado, em sua atividade profissional, não é sociedade civil. Passa a sê-lo, enquanto contribuinte. Caso contrário, a Ordem dos Advogados poderia alegar que a obrigatoriedade de se ter advogados em qualquer ação judicial –como consta da Constituição– é privilégio, e não ônus, da sociedade civil.
Quem quer que seja, só representa a sociedade civil quando defende idéias e propostas que beneficiam o conjunto dos cidadãos, contra privilégios de grupos empresariais, regionais ou corporativistas.
Quando condena a venda de estatais a preço de banana, a Associação Brasileira de Imprensa age como representante da sociedade civil –que é a verdadeira proprietária do patrimônio vendido. Quando defende a estatização, sem impor contrapartidas de controle de despesas, de aumento de produtividade, de prestação de contas à sociedade, comporta-se como defensora das corporações estatais contra os interesses gerais da sociedade civil.
Qual ABI assinou o manifesto contra a revisão?
Tempos dourados
Num certo momento, no início da década de 80, como segmentos organizados da população, estas entidades conseguiram projeção exprimindo o anseio geral pela democratização. Não receberam procuração, nem mandato, para representar a tal da sociedade civil. Mas representavam de fato o grande pacto nacional pela redemocratização.
Naqueles tempos, havia um segmento militar-empresarial que tratava o país como propriedade particular. Mamavam nas tetas do BNDES, da Caixa Econômica e do Banco do Brasil, concediam-se subsídios escandalosos, permitiam-se faturar em cima de estouros financeiros. Eram os verdadeiros inimigos da sociedade civil, ao tratar o país como sua propriedade particular.
De lá para cá, muita água rolou. A ditadura acabou, os tempos mudaram. Muitos dos segmentos organizados, que comandaram a reação contra o arbítrio, transformaram-se nos novos senhores do Estado, da nova-velha classe política a muitas dessas organizações ditas da sociedade civil.
Criaram-se verdadeiras oligarquias nas universidades, nas OABs, nas estatais, nos sindicatos, nos diversos poderes constituídos, cada qual valendo-se do enfraquecimento do Poder central –e na manutenção da estrutura administrativa centralizada– para tirar sua lasquinha, sem nenhum compromisso em prestar contas de seus atos, ou de devolver, com bons serviços, os privilégios obtidos. Tudo num jogo anti-social no qual o Estado brasileiro não reservou quase nada para a erradicação da miséria e para a melhoria dos serviços públicos.
Enquadramento
A grande luta da sociedade civil, hoje em dia, não é contra a ditadura –que descansa em paz e, espera-se, para sempre–, mas contra as vantagens corporativas acumuladas pelas diversas oligarquias, sempre que afetem o bem-estar geral.
A bandeira a ser empunhada é a do enquadramento do Estado, sua despolitização e subordinação aos interesses comuns, a criação de uma sociedade onde a figura central seja o cidadão e o Estado apenas o instrumento para se melhorar a felicidade e o bem-estar geral.
Muitas pessoas da sociedade civil têm a esperança de que a revisão seja o instrumento de se avançar nessa despolitização do Estado.
Pode ser que não. Mas, ao se colocar genericamente contra a revisão, sem explicitar seus receios, sem particularizar suas propostas, essas entidades não deixam claro que interesses representam –se os da sociedade civil de fato, ou se de interesses corporativistas menores.

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