São Paulo, segunda-feira, 17 de janeiro de 1994
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Para além da indignação

ALFREDO SIRKIS

A expectativa da impunidade é certamente um fator de exacerbação da corrupção. Na falta de mecanismos ágeis para colocar corruptos na cadeia e, sobretudo, confiscar (com alguma destinação social) suas fortunas, o parlamentar ou alto funcionário, corrupto, se expõe à pena máxima da execração na mídia e a um áureo ostracismo, cevado das "economias" depositadas, em toda segurança, em algum paraíso fiscal. Se a cadeia for o destino dos envolvidos nos esquemas Collor-PC Farias, do Orçamento e das empreiteiras, isso significará um avanço histórico inestimável.
É bem verdade que a corrupção não deixa de grassar na vida política de países onde costuma dar cadeia, basta ver os repetidos escândalos no Japão, nos EUA, na França ou na Itália. Lá, pelo menos, alguns se suicidam de vergonha, quando pilhados com a mão na massa, aqui agradecem a Deus por tanta sorte na loteria.
Acabar com a impunidade dos larápios é ponto de partida para fazer baixar a febre no corruptômetro patropi, mas equivale a uma terapia alopática de cura dos sintomas. É preciso ir mais fundo.
Será que somos uma sociedade essencialmente sadia, impregnada de valores éticos profundos que, por alguma bizarra anomalia hormonal, produz uma excrescente "classe política" picareta? Será que os João Alves, Nader e Raunhetti são, simplesmente, vis enganadores de um eleitorado que os sufragou como impolutos estadistas? Será a cultura fisiológica –a porta de entrada da corrupção– apanágio apenas dos parlamentares fisiologistas?
Durante muito tempo acreditei que eles se elegiam enganando seus eleitores. O convívio parlamentar e o contato com diversas comunidades, em épocas de campanha e no dia-a-dia, me ensinaram que a realidade é bem mais complexa e preocupante. É claro que existe o logro: taí Fernando Collor, o intrépido caçador de marajás. Mas, se examinarmos a base política de um deputado ou vereador fisiologista, perceberemos que a grande maioria dos seus votantes, sabe, ou, pelo menos, desconfia, em quem está votando.
Sem subestimar os efeitos da fraude eleitoral, institucionalizada, num sistema de votação que a facilita ao extremo, há que se admitir as evidências de uma escolha não necessariamente "inconsciente" deste tipo de político. São eleitos –e representam maioria, em praticamente todas as casas legislativas do país– por uma cultura clientelista, assistencialista e bairrista profundamente arraigada na própria população.
O pano de fundo da política brasileira, na qual um difuso "centrão" fisiológico reina sobre minorias ideológicas ou programáticas de qualquer tendência, é o estado de necessidade e um tipo de cultura consumista e gananciosa. A todo momento a mídia eletrônica e os demais mecanismos de formação do desejo nos bombardeam com a noção de que só é um homem de sucesso, só é "alguém na vida", aquele que ganhar muito dinheiro. "Chegar lá", "acontecer", na nossa sociedade, significa acumular muita grana, possuir e ostentar carro importado, superapartamento, jatinho, fazendas, casa em Miami.
A busca da riqueza não vem associada, como em outras sociedades, à perspectiva de uma ou duas décadas de árduo trabalho, mas envolta em fantasias de "se dar bem" por atalhos arrivistas. O desestímulo ao investimento produtivo e o primado da especulação financeira, este subproduto, não assumido, da ideologia neoliberal, ajudam a completar o quadro.
O ideal sonhado é enriquecer sem ter que ralar, num país onde a classe média foi de tal maneira devastada que deixou de ser referência de ascensão ou de estabilidade social. Dos caminhos para a fortuna fácil só o bilhete premiado, –aquele de verdade, não "a la" João Alves– pode eludir alguma forma de corrupção. Junto com as demais modalidades do crime, ela é o caminho mais curto para o almejado paraíso de alto consumo e desperdício. Paraíso que, aliás, já entrou em crise: a violência urbana, os sequestros, a paranóia generalizada vêm obrigando os ricos a deixarem o país ou a adotarem um "low profile" de classe média. A extrema concentração de renda dificulta seu próprio usufruto.
É preciso questionar essa mentalidade de ganância, de acúmulo material como ideal da vida, esse "ter" hegemonizando o "ser". E a representação política precisa ser associada a valores de austeridade e a um espírito de missão onde quem tem poder político não pode ter poder econômico e vice-versa. Não se trata de um voto de pobreza mas da consciência de que a vida pública não pode ser caminho de fortuna. Quem quiser exercê-la deve contentar-se com um padrão de vida de classe média, viver do seu salário.
Para melhorar a qualidade ética da representação, não basta apenas votar diferente da próxima vez. É preciso não só enfrentar a miséria, grande caldo de cultivo do fisiologismo, como também, lutar por uma mudança de valores, de pulsões e desejos na sociedade brasileira como um todo. Precisamos nada menos que de uma revolução cultural.

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