São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 1994
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Competição regional é desumana

MORACI SANT'ANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Só no Brasil acontecem os campeonatos regionais. Em nenhum outro lugar do mundo isso acontece. Só há campeonatos nacionais. Aqui chega-se ao ponto de um regional, como o Campeonato Paulista, ser mais forte que o campeonato nacional. Isso sem falar que grandes clubes brasileiros como São Paulo, Palmeiras e Flamengo disputam ainda torneios internacionais, Copa do Brasil etc.
Resultado: um calendário desumano. O primeiro problema: dividir a temporada em duas. Aí condiciona-se um jogador e procuram-se tratamentos alternativos para mantê-lo a nível de competição sem que ele perca o condicionamento. Fora a possibilidade de lesões, pois o atleta está mais exposto, corre mais riscos, está mais desgastado. O que gera uma preocupação a mais: passamos de preparadores a "recuperadores" físicos.
É desumano. Há muita competição, muitos jogos para cumprir. Isso precisa acabar. Acho até que a vida útil do jogador brasileiro está diminuindo. No caso específico do São Paulo, o jogador passa até a ganhar mais –ele não perde o condicionamento. Mas pode ser que a vida útil dele esteja diminuindo. E não há como mensurar isso.
Talvez esteja aí um dos motivos da queda do nível técnico dos jogadores brasileiros. Não há tempo para treinar, muito menos para desenvolver os fundamentos. Como é que o jogador pode se desenvolver? Até a seleção brasileira é afetada. Fica difícil fazer um trabalho adequado para encarar um campeonato mundial, por exemplo.
Tenho um levantamento da seleção brasileira de 1982 em que o maior média de passes errados em uma partida foi 18. Hoje, no São Paulo, esse número chega a 32. Não é culpa do jogador. Não se dá tempo para que ele obtenha um preparo adequado. Hoje se vê uma seleção da Colômbia com um nível técnico melhor que o da seleção brasileira. Eles mantêm a posse de bola por muito mais tempo do que nós. E o que era uma Colômbia perto de um Brasil há alguns anos?
Em um processo a longo prazo, o jogador brasileiro está perdendo a qualidade técnica que tinha, por exemplo, até 1970. Citando novamente a Colômbia, ela já iniciou sua preparação para a Copa do Mundo dos EUA.
E quem perde com isso? Jogadores, clubes e o próprio público, que poderia estar assistindo a um espetáculo de melhor qualidade.
Além disso, o Campeonato Paulista deste ano será disputado com pontos corridos. Toda partida é decisiva. Não tem mais aquele história de começar mal e recuperar depois. Os clubes deveriam ter um período razoável para a pré-temporada. Na Europa, são 40 dias. Aqui, pelo número de competições, deveriam existir no mínimo três semanas para que se possa dar uma base física ao grupo, um trabalho técnico. E pelo menos uns três amistosos, para dar ritmo de jogo ao atleta. Tem que se ganhar pontos já nos primeiros jogos.
São Paulo e Palmeiras, por terem competido até o final de dezembro, foram os mais prejudicados por este calendário. Nossos jogadores até mantiveram mais o condicionamento, devido ao reduzido período de descanso. Isso facilita nosso trabalho, mas a que preço para o jogador?
Nas avaliações feitas nos jogadores do São Paulo nesta última semana, já deu para notar índices superiores ao do retorno das férias do ano passado. Estes números têm crescido desde que cheguei ao clube, em 1990, quando iniciamos o processo de avaliação periódica dos atletas.
Este processo, além de permitir uma avaliação individual do jogador, dá a possibilidade de estabelecer-se parâmetros para toda a equipe. Com dados como o do teste de limiar anaeróbio, por exemplo, ditamos o ritmo dos treinamentos sem causar desgaste e sem reduzir o condicionamento.
Outro acompanhamento que realizo são scoults feitos durante todas as partidas. Hoje em dia, faço através de um note-book que levo para os estádios. São anotados os seguintes dados: passes errados, chutes a gol pró (entre estes, os que de fato chegaram ao gol), chutes a gol contra, faltas recebidas, faltas cometidas, cruzamentos de linha de fundo, outros cruzamentos e gols.
Com posse desses dados, é possível, por exemplo, apontar uma falha de um determinado jogador. Pode-se, então, corrigir a tal falha com treinamentos específicos.
Uma nova opção que estamos desenvolvendo é armazenar imagens de gols no próprio computador. Elas são digitalizadas e aparecem na tela quadro a quadro. Isto é muito importante. É muito mais eficiente mostrar do que falar ao jogador o que ele deve fazer. E, com a mobilidade do note-book, posso fazer isso durante o próprio treino, em campo.
Essas e outras novidades podem parecer exageradas. Mas duvido que algum treinador não gostaria de trabalhar com esses recursos. São armas poderosas para enfrentar esse calendário desumano.

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