São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Brasil prefere deixar o futuro ao deus-dará

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Um enxuto livro intitulado "Modernistas na Repartição" me fez de repente levar um tombo de Alice em um túnel do tempo. Fui parar no passado do Brasil. O livro (editora UFRJ, Paço Imperial, Tempo Brasileiro) é uma celebração do Sphan (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e daquilo que o organizador e prefaciador da obra, Lauro Cavalcanti, chama com propriedade de "produção do passado".
Aqui está a fase completa onde se insere o conceito: "Em 1936 logram os 'modernistas' ser considerados os mais aptos a erigir os novos monumentos do Estado, assim como são considerados 'dignos' pelo Estado para tornarem 'digna', em seu nome, a produção do passado que será por ele protegida para a posteridade".
Apesar de distraído e desmemoriado como ainda é até hoje, o Brasil soube produzir, exatamente quando entrava num Estado fascista que se dizia "Novo", seu próprio passado. O grande mágico foi Rodrigo Melo Franco de Andrade, que criou o Serviço do Patrimônio, a "Revista do Patrimônio", e que, sobretudo, tornou o brasileiro –pelo menos o brasileiro educado– consciente da posse de um patrimônio, de uma herança artística.
O brasileiro ficou outra coisa, a partir de Rodrigo. Passou a ter uma casa moderna, depois da visita de Le Corbusier e do pleno florescimento da arte de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, e uma antiga fazenda familiar como há poucas no mundo, pois do Pará ao Rio Grande do Sul o Serviço do Patrimônio descobriu e deu vida nova a toda uma procissão de casas-grandes e senzalas, chafarizes e prédios públicos.
Reproduzindo textos publicados na "Revista do Patrimônio" em várias épocas, o livro destaca os nomes dos "modernistas" que formaram ao lado de Rodrigo: Mario de Andrade, que fez o anteprojeto do Sphan, Manuel Bandeira, Joaquim Cardoso, Sérgio Buarque de Holanda, Lúcio Costa, Gilberto Freyre, Carlos Drummond, Antonio Candido. E da "Introdução" de Lauro Cavalcanti surge com nitidez o quadro até hoje perturbador dessa revolução iluminista que se realizou à sombra do ministro Gustavo Capanema, que por sua vez ficava à sombra do ditador Vargas.
Não fosse o ímpeto renovador de Capanema e dos modernistas que ele colocou na repartição do seu Ministério da Educação, o Estado Novo teria enveredado pelo caminho do mais tacanho nazi-fascismo, pois essa era a orientação do criador (em 1922) e diretor eterno (até sua morte em 1959) do Museu Nacional: o escritor Gustavo Barroso. O Museu já cuidava dos Monumentos Nacionais, espécie de semente do Sphan, mas semente que, se dependesse da jardinagem de Gustavo Barros, ia levar o Brasil ao integralismo estético.
Lauro Cavalcanti, não sem um certo sadismo, cita trechos assim do livro "O Quarto Império", de Barroso: "Os homens dessa geração são os precursores do Novo Império arbitral, do Império do Cordeiro, da Quarta Igreja, da Quarta Humanidade. Anunciaram a Boa-Nova ao povo brasileiro e irão, cumprindo seu destino, dormir o sono eterno, levando nos olhos a imagem maravilhosa do Brasil do Futuro, do Brasil-Integral."
Foi, portanto, derrubando uma mentalidade assim, e a vocação de um Estado Novo tão reacionário em outros setores, que a comissão de frente de Rodrigo produziu, a partir do modernismo, o passado do Brasil. Uma obra difícil. Ambígua e épica ao mesmo tempo.
A produção do presente
Andando mais para trás, pelo tubo do tempo, fui parar no ano da fundação do Brasil político, o de 1750. Portugal e Espanha não se sentiam mais à vontade no mundo dividido pelo papa em Tordesilhas. Partiram, então, para o Tratado de Madri, capitaneado, do nosso lado, pelo gênio diplomático de Alexandre de Gusmão. Foi ele que riscou na terra, para todo o sempre, o espaçoso e verde Brasil em que moramos.
Os espanhóis, entretidos em terras distantes como as Filipinas e a Califórnia, se espalharam menos que nós pela América do Sul. E quando foram ver, brasileiros já haviam empurrado muito para Oeste o enferrujado meridiano de Tordesilhas. E foi aí que Gusmão inventou a fórmula de deixar com o Brasil aquilo que o Brasil já ocupara com bota de bandeirante e sandália de frade.
A fórmula, latina para maior respeitabilidade, foi a do "uti possidetis". Na sua biografia do barão do Rio Branco, Alvaro Lins resume assim a história da mágica fórmula: "Esta doutrina foi o 'uti possidetis', criação e contribuição americana, principalmente brasileira, no plano do direito internacional. Era uma expressão originária do direito romano –'Uti nunc possidetis, quominus ita possideatis vim fieri veto'– que se aplicava, sem lhe mudar o sentido essencial, ao direito público moderno. 'Uti possidetis, ita possideatis': como possuis, continuai possuindo. Sustentava o Brasil que, dada a ausência de tratados válidos, a regra a seguir seria cada Estado ficar com o território que possuía."
Foi assim que Gusmão produziu o presente eterno do Brasil. Só tivemos, a partir de 1750, o trabalho de proteção das fronteiras. Aliás, não sei de nenhum outro país tão cioso quanto o Brasil em protegê-las –e mesmo, assim como quem não quer, em aumentá-las. Boa parte da fecunda vida do barão do Rio Branco foi dedicada aos limites do Brasil. Cuidava das nossas gigantescas fronteiras como quem cuida dos muros da casa em que mora. E o barão teve sempre o capricho, ao realizar sua grande obra, de cercar-se de homens da sua estatura, do seu "panache": chamou Joaquim Nabuco para cuidar de litígios nas Guianas, chamou Euclides da Cunha para a demarcação de limites com o Peru.
Temos, então, que Gusmão e Rio Branco nos instalaram para sempre num opulento presente de oito e meio milhões de quilômetros quadrados e que Rodrigo e Mario de Andrade redescobriram, recensearam e reconstruíram nosso território colossal as obras de arte que o tornam humano. Como explicar que saibamos criar o presente e o passado e sejamos tão bisonhos, ou tímidos, quando se trata de criar o futuro? O futuro a Deus pertence, é o que continuamos a dizer.
A verdade é que só um pequeno número de brasileiros vive na casa e entre as obras de arte que nos legaram Gusmão e Rio Branco, Rodrigo e Mario. O povão não aprende sequer a ler e portanto a absorver mentalmente e incorporar à sua vida o patrimônio artístico que por direito lhe pertence e não possui um só palmo de terra do qual tirar o seu sustento.
O "uti possidetis" ganhou sua trágica versão popular naquele samba desesperado que diz: "Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Onde é que eu vou morar?" O pior é que o sambista, isto é, o povão, sempre sai, debaixo de cachações, e, se insistir, de bala.

Texto Anterior: Time-Warner e Sony podem lançar canal
Próximo Texto: Patricia Highsmith traz Tom Ripley de volta
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.