São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 1994
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Patricia Highsmith traz Tom Ripley de volta

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Tom Ripley está de volta. Debaixo d'água. O herói mítico de Patricia Highsmith volta à ação na tentativa de evitar que o passado ilícito de assassinatos e falsificações que o consagrou em quatro romances anteriores venha à tona.
Em "Ripley Debaixo d'Agua" (Companhia das Letras, 302 págs. CR$ 9.250,00), o herói, agora acomodado com a mulher em sua casa de Fontainebleau (França), é atormentado por um estranho casal de americanos que ameaça pôr toda essa tranquilidade a perder, trazendo de volta tudo o que Ripley acreditou ter feito desaparecer com eficiência, a começar por um cadáver jogado num canal. Patricia Highsmith que vive na Suíça, falou por telefone à Folha sobre o romance, a Europa, o homicídio e a amizade.
*
Folha - Por que a senhora resolveu voltar a Ripley depois de tanto tempo?
Patricia Highsmith - Já esqueci há quantos anos foi publicado o último Ripley. Talvez há sete anos. Voltei ao personagem porque gosto de escrever sobre ele.
Folha - Neste livro, a trama vem do passado, do perigo de o passado emergir. É um sinal de que Ripley está ficando velho?
Highsmith - Ele ficou mais caseiro. Passou a apreciar mais o conforto do lar. Mas é claro que eu trapaceei na idade dele e da mulher. Na verdade, deveria ser mais velho.
Folha - A senhora pretende algum dia dar um fim ao personagem?
Highsmith - Não. De jeito nenhum. Não quero matá-lo.
Folha - A senhora vê alguma nova tendência no romance policial hoje?
Highsmith - Quase nunca leio livros policiais. Não são a minha leitura preferida.
Folha - O que a senhora lê?
Highsmith - Gosto de livros sobre política, sobre ciência política. Estou lendo um livro sobre "Frankenstein" e sua autora, Mary Shelley. Não leio muita ficção. Acabei de ler "Jazz", de Toni Morrison. Gostei bastante.
Folha - A senhora acredita que possa haver um esgotamento do romance policial como gênero?
Highsmith - Não. Há tantas variações. Não é só o mistério ou o crime, pode ser um romance muito psicológico ou com muita ação.
Folha - No entanto, hoje parece haver muito mais marketing do que qualidade entre os novos autores de thrillers.
Highsmith - Isso não pode matar o gênero, porque há tantos autores de qualidade no passado. São clássicos.
Folha - A senhora acredita que teria alguma chance se tivesse começado a escrever nesse tipo de mercado?
Highsmith - Não acho que seria diferente. Continuo tendo as mesmas idéias que tinha aos 16 anos, no colégio. Se tenho uma história, eu a escrevo. Meu primeiro livro, "Stranger on a Train" ("Pacto Sinistro"), tinha uma intriga policial, mas não pensei na palavra "suspense" quando o escrevi e me surpreendi quando a "Harper's" colocou o livro nessa categoria. Em seguida, quiseram que eu escrevesse outro livro na mesma linha. Eles tratam o autor como uma máquina. Mas eu não faço esse jogo. Por isso meu segundo livro foi totalmente diferente. Tenho que escrever o que quero escrever. Não escrevo sob pedido de ninguém.
Folha - Como a senhora vê todas as mudanças sociais na Europa, as tensões raciais, a guinada para a direita?
Highsmith - No momento, os países desenvolvidos como a França, a Suíça, a Alemanha e, de certa maneira, os Estados Unidos temem serem invadidos pelos outros povos. Veja o caso da Alemanha, invadida pelo Leste. Os EUA também não podem impedir a vinda de povos do Sul. É a mentalidade nos EUA: se você tem algum dinheiro, você se protege. Ainda assim, os americanos estão mais abertos que os europeus. É um país maior. A Alemanha tem uma legislação extremamente generosa, do ponto de vista de ajuda financeira, em relação aos imigrantes. Os EUA não têm nada disso.
Folha - Mas a tensão racial não a incomoda, não atrapalha o seu trabalho?
Highsmith - Você pode citar o exemplo da França e está certo, mas os radicais islâmicos na Argélia estão cortando o pescoço de brancos estrangeiros: 23 homens de negócio franceses foram mortos de uma vez outro dia. Por que os franceses não deveriam temer os islâmicos dentro de suas fronteiras? Cortaram os pescoços desses homens não porque eram judeus, budistas ou brancos católicos, mas por um simples ato de barbárie.
Folha - Por que a senhora dedicou este livro aos curdos e palestinos?
Highsmith - Foi só um impulso. Há anos venho me interessando pelo caso dos palestinos, porque, graças à Inglaterra, acabamos tendo ali uma situação muito grave. Conheço menos sobre os curdos e por vezes ouço falar de coisas erradas que fizeram, que foram impiedosos em relação a outros povos. Mas não podemos dizer que uma causa seja completamente errada e outra completamente certa.
Folha - Numa declaração ao jornal francês "Libération", a senhora disse que sempre acha que o pior vai acontecer e que isso a aflige muito. É essa a razão psicológica que a leva a escrever romances policiais?
Highsmith - De certa forma, sim. Alguém que infringe a lei se aflige com a idéia de ser preso. Não tenho essa angústia, porque não desrespeitei a lei, mas sofro de uma aflição semelhante.
Folha - O que a atrai nos assassinatos?
Highsmith - Nada. Considero o homicídio o pior de todos os crimes. Não sei. Não costumo me analisar. É muito difícil responder.
Folha - A senhora já disse que o que a atraía era a idéia de que nunca poderá conhecer a culpa desse crime.
Highsmith - Você pode dizer isso: que o que me atrai é algo que eu não conheço.
Folha - A senhora já declarou que começou a escrever para se divertir. A razão continua sendo a mesma?
Highsmith - Certamente. Escrevo para me entreter.
Folha - A senhora também disse que escrever é uma forma de colocar ordem no mundo.
Highsmith - Não no mundo, mas no meu mundo. Escrever é de fato uma forma de colocar o meu mundo em ordem. Pelo menos, quando fico satisfeita com a história que acabei de escrever. Não há dúvida de que escrever me ajuda a viver.
Folha - A senhora costuma fazer o elogio da solidão. Diz que precisa ficar sozinha para escrever. Que tipo de relação pode sobreviver na vida de um escritor?
Highsmith - As duas pessoas devem entender as necessidades do outro. Se a pessoa quiser ficar sozinha, cinco horas por dia podem ser suficientes. Parece até que estou dando a fórmula do sucesso!
Folha - A senhora acredita que a sobrevivência da amizade seja mais provável que a do amor na vida de um escritor?
Highsmith - Acho que sim, mas os escritores podem ser muito temperamentais também. Por vezes, têm personalidades muito duras, angulosas. Pode ser difícil fazerem amigos.
Folha - A amizade é uma peça central em suas histórias, mais que o amor entre um homem e uma mulher. Por que a senhora privilegia a amizade entre homens?
Highsmith - Os homens têm uma relação diferente com a amizade. É mais difícil para as mulheres. Talvez eu esteja errada. Não gostaria de dizer uma asneira. Mas me parece que garotos estabelecem relações de amizade que você não vê entre meninas. É mais forte.

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