São Paulo, sábado, 22 de janeiro de 1994
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O furor ético não passa de sarampo

GERARDO MELLO MOURÃO

NÃO
Só os ingênuos poderão supor que o Brasil passa a ser outro depois da CPI; talvez fique pior
A corrupção política é velha como a sé de Braga. Mais do que a sé de Braga. E os anos 93 e 94 estão marcados, parece, pela paixão cívica de depurações democráticas, que acabaram destruindo a democracia. Foi em 493 e 494, antes de Cristo, conta Tucídides, que a exemplar democracia da polis grega foi submetida ao furor inquisitorial de um partido de minorias enérgicas que queria salvá-la da corrupção. Não salvou. O resultado, a curto prazo, foi uma ditadura, fundada sobre a morte física e a morte civil de milhares de cidadãos. Entre inocentes e culpados, salvaram-se poucos.
Para não ir muito longe, em 1793 e 1794, os Comitês de Salvação Pública levaram a França ao jacobinismo e ao terror. Chamava-se de "terror salutar" o estabelecimento de uma "Justiça do povo", para substituir a Justiça dos tribunais, segundo a ordem de Marat: "Não precisamos de tribunais, precisamos de guilhotinas". Em nome da moralidade republicana, Baudot pedia o extermínio de metade da população francesa. Saint-André achava que era preciso liquidar mais de metade. E Jouffroy propunha a amputação de 21 milhões de vidas, numa população de 26 milhões. "Transformaremos a França num cemitério, se a não regenerarmos a nosso modo".
Mais perto de nós, em 1893 e 1894, a truculência de Floriano Peixoto também promoveu prisões em massa, perdas de direitos, exílios e massacres, para salvar a República. Não salvou.
Como se vê, as dezenas históricas de 93 e 94 são fatídicas. Foi sob o signo dessas dezenas que nosso Lula sentenciou que há pelos menos 300 picaretas no Congresso Nacional. Parece que a CPI do Orçamento foi gerada no útero dessa declaração puritana e radical. E acabou nascendo da manobra bastarda de um uxoricida hediondo, que encontrou na delação de si próprio e de cúmplices rea s e imaginários a grande cortina de lama com que supunha poder ocultar seu delito maior.
Há políticos corruptos? Há. É preciso puni-los? É. Não sei se são as duas dezenas dos relatórios da CPI ou os 300 da delirante denúncia do Lula.
Mas a liçâo que deve ficar é a de que aqui, como na velha invectiva de Lênin, os furores éticos e cívicos de regeneração, episódicos e intermitentes, são uma espécie de brotoeja, de sarampo, de doença infantil dos salvadores da pátria, em todos os tempos.
É preciso não ter ilusões: qualquer que seja o alcance da CPI, só os ingênuos poderão supor que o Brasil passa a ser um antes, e outro, depois dela. Talvez fique pior.
Corremos o risco de ver a Justiça provida não pelos tribunais que, bons ou maus, são do ofício, para vê-la entregue aos juízes de ocasião. De ocasião e facciosos, no sentido literal da palavra, porque pertencentes a facções políticas, empenhadas em destruir as facções opostas.
Não se queixem, se depois disso vier o dilúvio. Isto é, os tanques, para os quais os picaretas não serão apenas 300, mas 600. O Brasil poderia ser outro se, em vez de CPIs, pudéssemos confiar em tribunais. Afinal, elegemos deputados e senadores. Não juízes de pequenas causas ou tiras de polícia –vocação surpreendentemente revelada por alguns cepeístas desvairados.

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