São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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A insustentável leveza do Mercosul

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS

RICARDO ANTONIO SILVA SEITENFUS
"Há serviços tão grandes e tão importantes que só a ingratidão os pode pagar".
Mme. de Sévigné

A 5.ª Reunião de Cúpula do Mercosul, há pouco realizada em Colônia do Sacramento (Uruguai), corrobora as críticas que até então vinham sendo endereçadas à construção do Mercado Comum do Sul. Postergada de dezembro de 93 para janeiro de 94, alargando o prazo apontado como cronograma de Las Lenas (Argentina) para estabelecer uma Tarifa Externa Comum, esperava-se que os negociadores do Mercosul estivessem munidos e uma pauta mínima, já consolidada entre as partes. Surpreendentemente, os presidentes dos quatro países membros foram levados a uma "não-reunião", auferindo patético tom de solenidade ao evidente fracasso, na medida em que se decidiu não decidir.
O Executivo brasileiro tenta, apesar dos percalços, apresentar a reunião como uma natural e bem-sucedida etapa das negociações. No entanto, além da ausência de resultados, no dia 17, em Colônia, os presidentes da Argentina, Uruguai e Paraguai expressaram publicamente reservas, deixando pairar dúvidas sobre a intenção de sanar as dificuldades existentes.
O próprio governo federal vê-se obrigado a reconhecer, com as "não-decisões" de Colônia, a pertinência das críticas até então formuladas, no momento em que admite a inexequibilidade dos prazos e os redimensiona. Tanto o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, quanto o secretário de Política Econômica, Winston Fritsch, apontam como novo prazo o ano de 2.001 e até admitem que este pode estender-se até 2.006, para que se atinja a união aduaneira. Contudo, mantém uma cortina de fumaça sobre o Mercosul, alimentando equívocos e ilusões sobre o tema.
Um bom exemplo do que afirmo é o argumento de que os governos dos países-membros não tinham efetivamente como objetivo a consolidação de um mercado comum. Ora, o Tratado de Assunção, em seu capítulo 1, artigo 1.º, reza que "os Estados Partes decidem constituir um Mercado Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994, e que se denominará 'Mercado Comum do Sul' (Mercosul)".
O governo deve ir além e admitir que de fato ambicionava um mercado comum e encontra-se frustrado em sua ambição: por não ter compreendido a complexidade do fenômeno; porque não se muniu dos instrumentos imprescindíveis para a empreitada, como, por exemplo, uma postura segura, subsidiada por uma qualificada e independente assessoria; porque não conseguiu colocar o Mercosul na ordem do dia das questões de política econômica, sobretudo pela ausência de debate instalado na sociedade civil. Todavia, o pecado capital no "imbroglio" em que se transformou o Mercosul encontra-se no Tratado de Assunção e no subsequente Cronograma de Las Lenas, que dimensionou os prazos do mercado em função dos mandatos presidenciais de quem o subscrevia.
Resta-nos escolher entre duas dolorosas conclusões. Ou o governo federal desconhecia as diferenças entre zona de livre comércio, união aduaneira e mercado comum; ou estamos diante de um engodo, ardilosamente tecido, para nos fazer acreditar em um grande mercado, quando na verdade o que se pretende é atenuar ou dirimir alguns entraves para certos setores econômicos.
O Mercosul coloca o Brasil perante dois dilemas. Caso ele seja, como muitas vezes o governo brasileiro dá a entender, apenas uma questão comercial, é preciso transformá-la –do tópico eminentemente diplomático como hoje é tratada– para um desafio de política econômica nacional. Nesse sentido, os diplomatas devem ser apenas os porta-vozes dos interesses brasileiros e não os seus formuladores.
O segundo dilema é, caso o Tratado de Assunção passe a ser o que nunca foi, ou seja, respeitado, a formação de um espaço único na Bacia do Prata, que pode, se levarmos ao cabo a lógica da integração, significar inclusive, a longo prazo, o fim das fronteiras políticas entre os países-membros. Neste caso, o governo não pode prescindir da sociedade civil para traçar os rumos e os contornos dessa integração. Em que pese a existência de uma espécie de consenso nacional acerca dos aspectos positivos inerentes à implantação do Mercosul, são significativas, porém, as divergências no que se refere à forma que deve ser adotada para materializar tal projeto.
Sendo o combate à inflação e a melhoria de qualidade de vida propalados objetivos da integração, devemos questionar, entre tantos outros itens, o que nós consumidores brasileiros auferimos até agora com as etapas da integração que já foram atendidas. O grande argumento do governo para demonstrar a pertinência do Mercosul é o de que houve uma duplicação dos números do comércio intra-regional entre 1990 e 93. Fato inquestionável, não guarda, entretanto, origem no Tratado de Assunção, e sim nas políticas econômicas dos países membros. Sendo essa a prova do "sucesso" do Mercosul, o que se deseja então não é um mercado comum e sim uma frágil zona de livre comércio. Qual o proveito desta pseudo-ZLC, em 2.001, para o cidadão brasileiro?
Um mercado comum pode fazer muito mais por um país, caso ele realmente o deseje e seja bem conduzido. Das lições que a Comunidade Econômica Européia pode nos dar, certamente destaca-se o nivelamento dos preços em qualquer lugar da Europa. É preciso que a dita modernização que se pretende com a integração permita uma luta eficiente contra os grandes problemas da economia brasileira. O que o governo brasileiro está a encaminhar, hoje, do ponto de vista do conjunto da sociedade brasileira e do interesse público, é uma sucessão de acordos inacabados, vazios de sentido.
Ao menos, o novo Brasil que se prepara, a partir de 95, não estará fadado a arcar com os compromissos inexequíveis assumidos em nome do Estado brasileiro, eis que o atual governo alarga –com tantos adiamentos e lacunas–, as possibilidades de negociação do seu sucessor. Ainda que originada no despreparo ou no desleixo, a atitude do Planalto acabou por ser ética e moral.
Urge, neste momento de balanço, que seja viabilizado um Fórum Nacional sobre o Mercosul, com representantes da sociedade civil, dos poderes Executivo e Legislativo, para respaldar criticamente as ações a serem empreendidas. É mister que se rompa o tom prepotente que hoje orienta a intervenção governamental, pois impede uma discussão aberta e transparente de questões que interessam a todos e contradiz a experiência histórica da CEE, onde milhares de especialistas das diferentes áreas do conhecimento, independentes do poder político, obram diuturnamente nas questões integracionistas.
Enfim, o fracasso da Reunião de Colônia oportuniza duas leituras. A primeira, do senso comum, é que o não-cumprimento dos prazos previstos pelo Tratado de Assunção significa que o Mercosul é mais uma das decepções em termos de cooperação econômica na América Latina. A segunda, concordando que a Reunião de Colônia decreta a morte do Cronograma de Las Lenas, cria, inobstante, condições objetivas para que o verdadeiro Mercosul possa emergir de forma responsável e madura, na defesa dos interesses dos povos da Bacia do Prata, inserindo-os de maneira competente no sistema internacinal que se desenha.

RICARDO ANTONIO SILVA SEITENFUS, 45, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra, é coordenador do Curso de Mestrado em Integração Latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS). Foi coordenador do Projeto Mercosul no Instituto de Estudos Avançados da USP e secretário especial para Assuntos Internacionais do Rio Grande do Sul (governo Pedro Simon).

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