São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Os dilemas do mapa genético

MAYANA ZATZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A introdução de testes genéticos que possibilitem a identificação de características genéticas constitui o primeiro resultado prático do Projeto Genoma Humano –no qual os cientistas propõem mapear até o próximo milênio entre 50 mil e 100 mil genes responsáveis por características hereditárias.
No caso das quase 6.000 doenças genéticas já conhecidas, a importância desses testes, apesar das discussões de ordem ética, é inquestionável. Nos países do Primeiro Mundo, onde doenças de causa infecciosa ou social (desnutrição ou falta de higiene) já foram controladas, as patologias de causa genética assumem uma importância cada vez maior.
Estatísticas recentes mostram que nos EUA e Canadá, um terço das internações em hospitais pediátricos e cerca de 50% das mortes no primeiro ano de vida ocorrem por causas genéticas. Isso tem levado os cientistas a desenvolver um número crescente de testes genéticos para identificar os portadores de genes deletérios, com risco de serem ou terem descendentes afetados.
Existe um conceito errôneo de que doença genética é a que foi herdada dos antepassados. Na realidade, doença genética não é sinônimo de doença hereditária. Muitas doenças genéticas são causadas por mutações novas, apresentam-se como casos isolados na família sem risco de recorrência.
Dentre as doenças genéticas temos: 1) As causadas por aberrações nos cromossomos –estruturas presentes no núcleo de cada célula, em número de 46, que carregam informações genéticas e são visíveis ao microscópio. O exemplo mais conhecido é a síndrome de Down, causa mais frequente de deficiência mental. Nela há um cromossomo do par 21 a mais, ou seja, 47 em vez de 46.
2) Aquelas causadas por defeitos nos genes –sequências da molécula de DNA, contidas nos cromossomos, que codificam nossas proteínas. Os genes não são visíveis ao microscópio e só podem ser detectados por testes específicos, analisando o DNA. Estima-se que temos entre 1.000 e 2.000 genes por cromossomo.
Discussão ética
A aplicação de testes genéticos tem gerado muitas discussões éticas. Por exemplo, imaginemos que seja possível detectar em uma criança o componente genético responsável por sua inteligência e, a partir daí, estimar a sua capacidade intelectual futura. Saberá a sociedade utilizar tais informações de maneira construtiva? Não é difícil imaginar que venha a se exigir um perfil genético da capacidade intelectual para admitir uma criança na escola ou um adulto em um emprego. O que fariam as companhias de seguro de saúde se fosse possível predeterminar a causa mais provável de nossa morte ou a nossa longevidade? Como reagiríamos se pudéssemos saber de antemão se temos componentes genéticos de personalidade com características indesejáveis, tais como propensão para drogas ou alcoolismo? Estamos preparados para lidar com o conhecimento do nosso ser? Tais questões ilustram a importância e a necessidade da elaboração de códigos de ética que acompanhem os avanços científicos.
Os testes genéticos para detecção de portadores de genes deletérios, através de programas de triagem populacional, também têm gerado muitas discussões éticas, a não ser nos casos de doenças para as quais já existe tratamento. O maior argumento contra a implantação desses programas é que a identificação de portadores de genes deletérios poderia estigmatizá-los. Mas isso não pode ser generalizado. Os benefícios contra os possíveis malefícios devem ser pesados em cada situação.
Por exemplo, no caso da fibrose cística do pâncreas (que ataca os pulmões causando pneumonias recorrentes), os portadores do gene permanecerão totalmente assintomáticos durante toda a vida. Estima-se que 95% dos casos da doença não são detectados no Brasil. Entretanto, um casal em que ambos são portadores do gene poderá evitar o nascimento de uma criança afetada através de um diagnóstico pré-natal no primeiro trimestre da gravidez, seguido de aborto terapêutico dos fetos portadores, se assim o desejar.
Se o portador do gene defeituoso vai desenvolver a patologia condicionada pelo gene, a situação é bem diferente. Por exemplo, qual seria a vantagem para uma pessoa jovem ou uma pessoa saudável, em qualquer idade, de saber que irá desenvolver a doença de Alzheimer, caracterizada por senilidade precoce após os 65 anos? Apesar do otimismo em relação a futuros tratamentos, no momento não existe nenhum remédio efetivo que possa preveni-la.
No caso de outras doenças, como a síndrome do X frágil, que causa deficiência mental, a situação é mais complexa. O gene responsável por ela, localizado no cromossomo X, está presente em cerca de um em cada 1.200 indivíduos do sexo masculino e um em cada 2.500 do sexo feminino. Quase todos os meninos portadores terão a doença (moderada ou grave), enquanto cerca de 25% das meninas portadoras podem também ter um comprometimento intelectual, em geral mais leve.
Um grupo de pesquisadores do Colorado (EUA) decidiu recentemente testar um grupo de mil crianças que têm problemas de aprendizado, para verificar quantos teriam o gene. A pesquisa suscitou uma polêmica ética, pois alguns médicos acham que a detecção de portadores poderia ser mais prejudicial do que benéfica, uma vez que crianças com disfunções mínimas poderiam ficar "rotuladas" e suas famílias, estigmatizadas (veja texto abaixo).
O argumento favorável é que, uma vez identificados, os portadores do gene do X frágil poderiam receber uma educação adequada para contornar as dificuldades. Além disso, a identificação de portadoras do gene defeituoso poderia prevenir o nascimento de meninos com uma forma mais grave da síndrome.
Testes Genéticos
Se programas de triagem populacional causam polêmica, a importância do uso de testes genéticos para confirmação de diagnósticos e identificação de portadores em famílias de alto risco é indiscutível entre os geneticistas. Nesse sentido, a boa notícia é que a maioria dos testes genéticos disponíveis no Primeiro Mundo já são realizados no Brasil, em centros especializados (veja quadro abaixo ).
Os cientistas lutam para conseguir o tratamento futuro de todas as doenças genéticas. Enquanto ele não for alcançado, prevenir o nascimento de novos afetados é fundamental. Isso tem sido conseguido através da detecção de casais com risco de ter filhos com doenças genéticas e do diagnóstico pré-natal no início da gravidez (estudando os cromossomos ou o DNA do feto em risco).
A legalização do aborto, principalmente do aborto terapêutico, proposto pela senadora Eva Blay, será fundamental, pois permitirá a casais em risco que gerem crianças saudáveis de ambos os sexos. Ao contrário do que se imagina, pesquisas internacionais mostram que a possibilidade de um diagnóstico pré-natal e a interrupção da gravidez, no caso de fetos comprometidos, têm diminuído a proporção de abortos em famílias de alto risco genético.
Esses dados foram confirmados no nosso centro, para casais com risco de ter filhos afetados por distrofias musculares progressivas. Em 23 casos de diagnóstico pré-natal no último ano, só foi detectado um afetado, ou seja, 22 vidas foram salvas.

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