São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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O "desenho musical" de Shakespeare

GERALDO DE CARVALHO SILOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na crônica "A nossa desgraça", Heitor Cony espanta-se porque Shakespeare, numa de suas peças, teria chamado o galo de "clarim da aurora". E comenta: "Com o devido respeito, não considero essa a melhor imagem do vate, chegou mesmo a suspeitar dela, tem bafio de Acácio."
Que admirável suspeita! Há música verbal e estrutura de metáforas em Shakespeare que obrigam o poeta a soar o alarme quando a tradução o perturba. E que até seguram a mão do tradutor, para impedir desastre.
A imagem de que Cony suspeita figura no primeiro ato , cena 1, linha 159, de "Hamlet". Eis o original: "... the cock, that is the trumpet to the morn, ...". Encontrei a imagem citada pelo cronista na tradução de D. Luís de Bragança, publicada em 1887, mas que não partiu do original: transpõe o texto da tradução francesa (editada em 1862) de F. Victor Hugo: "clairon du matin". O filho de Victor Hugo (para quem só Deus passava antes de Shakespeare) parece ter inspirado outras traslações errôneas –apenas as de André Gide ("trompette du matin) e a de Eugenio Montale ("tromba del mattino").
No contexto, "trumpet" significa "arauto" e WS empregou o vocábulo cinco vezes na peça e 59 vezes em toda a sua obra, com sentidos vários. Malone descobriu que Shakespeare colheu a imagem na antologia "England Parnassus", de Michael Drayston. Com o mesmo significado "arauto", ocorre no Rei João:
"Sejas o arauto ("trumpet") da minha cólerae..."
(Ato 1, cena 1, linha 127)
Nada mais simples do que verificar o significado de "trumpet": basta espiar no "Oxford English Dictionary" o quarto sentido do vocábulo, confirmado por editores críticos da peça, como Dowden, Dover Wilson e Jenkins. O grande dicionário – fundamental para traduzir Shakespeare –saiu em 1933 e, portanto, antes das traduções de Gide e de Montale. Ambos poderiam tê-lo consultado. (Ou o "Lexicon", de Schmidt, de 1874). Mas há excelente desculpa: não se sabia na época que Shakespeare empregou cerca de dez mil palavras (dos 18.066 vocábulos diferentes que usou), cujo sentido gráfico atual difere completamente do conteúdo elisabetano. "Trumpet" é uma dessas palavras. A luz do "OED", o membro da frase significa; "... o galo, arauto da luz da alvorada, ..." ("luz da alvorada" transpõe ou "morning", conforme o texto do primeiro in Quarto ou o do segundo in Fólio).
Segundo lenda da época, na véspera do Natal, os galos começavam a cantar à meia-noite, para avisar os fantasmas de que a luz da alvorada se aproximava: deveriam recolher-se às prisões em que estavam confinados. Por esse motivo, Marcelo logo comenta o súbito desapareciIento do Fantasma:
"Ele" murchou e desfez-se no ar ao canto do galo".
"Ele" (a alma do Rei Hamlet) obedeceu imediatamente ao galo. Alma vivíssima que compõe, com Horácio, Marcelo e Bernardo, a "cena melhor estruturada em qualquer literatura", na opinião de T.S. Eliot. "Nada é supérfluo", acrescenta –"e não há um verso que não se justifique pelo seu valor dramático" ... "É grande poesia e nela surde, quando a examinamos, uma espécie de 'desenho musical'." (cito "Piety and Drama").
Como outro exemplo, o poeta de "Waste Land" reproduz a famosa imagem, da mesma cena, em que a manhã personifica o camponês caminhando bem cedo para o trabalho:
"Mas vejam! A manhã, vestindo
um manto rubro, pisa o orvalho ..."
Há em "Hamlet" 279 metáforas. E só um crítico com a lucidez poética de Eliot poderia identificar, entre as imagens, o "desenho musical".

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