São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Bandeira pouca é bobagem no país dos paranóicos

BIA ABRAMO
EDITORA-ADJUNTA DA "ILUSTRADA"

Eles são cabeludos, usam tatuagens no corpo e se vestem de preto. Tocam seus instrumentos em volume alto, com som distorcido e de forma rápida –isso se chama thrash metal, um cruzamento bastardo de heavy metal e punk, dois dos subgêneros mais sujos e brutais do rock. Suas letras são manifestos agressivos vociferados em inglês, seus discos se chamam "Chaos A.D.", "Bestial Devastation", "Beneath the Remains". Para alguns olhos, a escória da humanidade. Para outros –a molecada, sobretudo–, simplesmente o máximo.
Eles são o Sepultura, a banda de rock nacional que mais faz sucesso no exterior. Ou melhor, o único grupo de origem brasileira que está inserido no mercado internacional do rock da mesma forma que grupos de origem norte-americana, inglesa ou alemã, só para citar as nacionalidades mais comuns entre as bandas de metal.
Eles ganharam as primeiras páginas dos jornais do final da semana passada. Max Cavalera, o vocalista do Sepultura, recebeu uma bandeira jogada pelo público no fim de sua apresentação na segunda noite do Holywood Rock, em São Paulo. Cavalera abriu a bandeira, uma bandeira do Brasil com o símbolo da banda aplicado no centro do círculo azul-celeste.
O gesto de Cavalera foi um gesto simpático, um agradecimento a seus fãs: o Sepultura foi incluído na programação oficial do Holywood Rock (quase um mês depois dos outros escalados) por pressão do seu fã-clube, que arrecadou assinaturas e pressionou a organização do festival. O que aconteceu depois da abertura da bandeira não se sabe. Jornalistas presentes ao show disseram –e escreveram em seus respectivos jornais– ter visto Cavalera pisar na bandeira. Alguns olhos de lince chegaram a enxergar uma cusparada. Outros ainda, nada viram, além da abertura da bandeira.
A polícia, é claro, também viu e deteve Cavalera logo depois de sua apresentação no festival. A polícia tem a lei ao seu lado, uma lei promulgada em 1971, no período mais duro do regime militar. Mas o que exatamente se viu no gesto de Cavalera?
A suscetibilidade das autoridades em relação aos símbolos da pátria é notoriamente delicada. Madonna enrolada provocou arrepios, Cazuza cuspindo, indignação. No caso de Cavalera, a sensibilidade deveria estar mais aguçada ainda, uma vez que no repertório do show do Sepultura estavam "Polícia", já uma espécie de hino de protesto da juventude, e uma música lembrando a morte dos 111 presos no Carandiru. Certamente, essas duas referências não exatamente elogiosas a métodos policiais provocaram distorções de percepção –o que não é incomum a uma instituição que, digamos, tem a paranóia como instrumento de trabalho.
O espantoso é que fora da polícia também se viu o "mal" no incidente de Cavalera. O jornal carioca "O Globo" recolheu depoimentos sobre a "pisada" –não confirmada nem pela polícia e explicada por Cavalera como um simples tropeço, normal na movimentação de palco, em seu depoimento na delegacia. Todos, contra ou a favor, partem do princípio de que aquele foi um gesto de "protesto".
O dramaturgo Dias Gomes, que já teve problemas com a censura, se une aos fardados mais histéricos para decretar: "Foi um protesto moleque. Só poderia ter partido de uma cabeça de merda". Um psicanalista (sic), José Nazar, sugere, acreditem se quiser, nada mais nada menos do que linchamento como punição. O jurista Miguel Reale Jr. prefere um "pessedebismo" pedagógico, ao aprovar a atitude da polícia em detê-lo como exemplo para a juventude.
No Inglaterra, em 77, a bandeira inglesa transformada em camiseta ou costurada nas jaquetas de couro era uniforme dos punks. A "star and stripes" também vira T-shirt, bermuda e outras peças de roupa. Axl Rose, vocalista do Guns N'Roses que cultiva o hábito insalubre de atirar cadeira em jornalistas, costuma se apresentar com uma camiseta estampada com a bandeira norte-americana. A apropriação da bandeira pode até ter um sentido ambíguo, mas jovens ingleses e americanos não duvidam por um momento de seu direito em fazê-lo.
Aqui no Brasil parece –e a histeria em torno deste e de outros episódios envolvendo o verde-amarelo confirmam– que a bandeira não é um símbolo da nação e, portanto, do conjunto de seus habitantes, mas sim do Estado, zelosamente defendida por seu Exército e sua polícia. A bandeira na mão de um cidadão como Max Cavalera –um sujeito que ganha a vida tocando metal–, só pode ser caso de polícia.
Ninguém viu, ou fingiu que não viu, o gesto seguinte de Cavalera. Max encerrou sua apresentação no Holywood Rock mostrando seu filho Zyon para o público. E o bebê tinha uma camiseta estampada com –é isso mesmo–, a bandeira brasileira.

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