São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Infante, um escritor que nasceu no exílio

SOL ALAMEDA
DO "EL PAÍS"

Ele nasceu em 1929, na província de Oriente, Cuba, perto de onde nasceram Fulgêncio Batista e Fidel Castro. Filho de fundadores do Partido Comunista, viu como seus pais foram presos pelo governo de Batista quando ainda era um menino. Dois anos mais tarde, seus pais faziam campanhas pró-Batista a mando do Partido.
Cabrera Infante, que lançou no ano passado "Mea Cuba" (ainda sem tradução no Brasil), foi jornalista e crítico de cinema. Em 1959 dirigiu o Conselho Nacional de Cultura, foi diretor do Instituto do Cinema e fundador da revista "Lunes de Revolución". A partir de 1961 começou a distanciar-se do castrismo, por causa de uma polêmica político-literária sobre um filme que seu irmão dirigiu, e que levou o governo a fechar a revista. Já convertido àquilo que ele mesmo chama de dissidente, foi enviado para a embaixada cubana em Bruxelas onde ocupou o cargo de adido cultural e assim ficou afastado do país. Abandonou definitivamente Cuba em 1965.
Em 1967 é publicado seu livrou"Três Tristes Tigres" ganhador do prêmio Seix Barral, categoria romance. Em 1968 fez declarações de oposição frontal ao regime de Castro. A partir daí se converteu no intelectual dissidente exemplar, e não parou de publicar livros de ficção e textos políticos com críticas aos dirigentes cubanos. Agora, quando quase ninguém defende o regime de Fidel Castro, Cabrera considera que o tempo acabou lhe dando razão, mas não pensa em comemorar.
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El País - Em um debate sobre seu romance "A Havana para um Infante Morto", Mario Vargas Llosa definiu o livro como uma visão nostálgica de Cuba por um adolescente. Você acredita ter ficado preso àquela época, que foi recordada no exílio?
Cabrera Infante - Quando cheguei com minha família em Havana, em 1941, tinha 11 anos e minha infância acabou; assim, minha adolescência começou em uma determinada data, coisa que acontece com muita pouca gente. Houve uma mudança, do campo para a cidade, condições de vida totalmente diferentes. Tudo isso está no livro, que é em parte ficção, e há partes que ocorreram em realidade. Porque minha adolescência foi mais ativa do que pode parecer: estudei, participei de grupos esportivos e literários, organizei revistas. O personagem de "Havana para um Infante Morto" se alimenta de todas essas recordações que tinha desses anos e que se materializaram sobre o papel em Londres.
El País - O exílio o fez escritor?
Infante - Sim. Em Havana era um jornalista bem-sucedido. Comecei a publicar fotos de garotas seminuas e com o tempo, sem a intervenão de Fidel Castro, em uma Cuba capitalista teria desnudado ainda mais essas garotas, me preocuparia em ir para a cama com elas e me tornaria uma versão cubana do diretor da "Playboy". Vê que destino mais deplorável? Sem dúvida, na Europa, Fidel Castro me transformou em escritor, não tive outra solução. Isso é uma "boutade", mas como tal tem algo de verdade –de uma verdade muito violenta.
El País - Sua repulsa ao castrismo surgiu logo depois do fechamento da revista que você dirigia?
Infante - Aconteceu num momento preciso. Em "Lunes de Revolución" produzimos o filme "P.M.", que foi considerado contra-revolucionário. Houve um encontro e Castro disse uma frase que para muitos era uma expressão liberal, mas que eu, que vinha de uma família comunista, interpretei como totalmente stalinista. Era a seguinte: "Com a revolução tudo; contra a revolução, nada". Claro, era a revolução que estabelecia que coisas estavam a seu favor ou contra. Foi quando comecei a repudiar tudo o que significava não só a revolução, como também a literatura da revolução ou a revolução na literatura. Repudiei até meu primeiro livro "Asi en la Paz como en la Guerra" ("Assim na Paz como na Guerra"). Um livro escrito em 1961, no qual me permiti esmagar a verdade em nome da ideologia. É um livro que desprezo.
El País - A oposição a seu pai que era comunista não predispôs você para uma oposição prematura contra a figura de Fidel Castro, o pai da nova Cuba?
Infante - Meu pai era um homem que acatava tudo. Era filho de um emigrante que matou sua mulher e se suicidou. Meu pai foi criado por sua avó, uma tirana, e logo se casou com minha mãe, que era muito dominadora. Não sei como conseguiu convertê-la ao comunismo, mas o fez, e na minha casa havia um Sagrado Coração sangrando ao lado de uma foto colorida de Stálin. Não creio que haja nada de freudiano na minha atitude em relação ao meu pai. Exceto, isso sim, uma extrema desilusão pela submissão ao partido.
El País - Então você se converteu num rebelde?
Infante - Me rebelei contra tudo o que representava meu pai, contra sua absoluta obediência ao Partido Comunista. Vi com grande ódio que fez campanha a favor de Batista. Como todas as crianças, tinha um grande sentido de justiça e pensava que deviam vingar-se do que Batista fez contra eles (Batista prendeu os pais de Infante), mas faziam o contrário. Nesse momento recebi minha primeira vacina anticomunista.
El País - Quando tomou a decisão de deixar Cuba?
Infante - Foi aos poucos. Aos 25 anos era o que se pode chamar um trotskista. Mal sabia que um trotskista era maior inimigo para os comunistas que um não-comunista ou um anticomunista. Os comunistas que estavam na cultura pensavam que meu anticomunismo era um fingimento sem dimensões políticas, mas quando fecharam "Lunes de Revolución" começaram a pensar como poderiam me neutralizar. Era perigoso ter uma vítima como eu.
El País - Eles consideravam você um "enfant terrible"?
Infante - Mais ou menos. Me enviaram para ser o terceiro adido cultural em Bruxelas. O segundo adido era quem abria a porta, e quando ia dar recados eu o substituía. Assim, passei de diretor de revista a porteiro em Bruxelas. Voltei em 1965. Pensei que não me deixariam voltar para lá.
El País - Mas o deixaram partir.
Infante - E pagaram as passagens. Me deram uma licença de dois anos, acreditavam que o exílio ia me neutralizar. Tinha uma família para sustentar, e pensavam que isso me impediria de fazer qualquer coisa. Pensavam que meu livro "Três Tristes Tigres" seria recebido sem grande estardalhaço.
El País - Como as pessoas de seu meio –o literário– reagiram quando optou pelo exílio?
Infante - Houve uma honrosa exceção: Mario Vargas Llosa. Os outros, quando fiz minhas primeiras manifestações anticastristas em uma revista argentina, em 1968, se declararam meu inimigos.
El País - Foi neste momento que se sentiu mais só em toda a sua vida?
Infante - Sim. Foi um momento muito grave porque colocou em risco inclusive minha própria estabilidade pessoal. Mas, como em muitas outras ocasiões na minha vida, o cinema veio para me salvar. Acabava de ser entrevistado por um funcionário espanhol que me disse que não poderia ficar na Espanha, quando recebi de Londres o roteiro de um filme.
El País - Você diz que o único que o ajudou foi Vargas Llosa. Mas naquela época, acredito, ele era castrista.
Infante - Não é que me ajudou: disse coisas que eram corretas. Quando ele deixou Londres, em 1969, me disse: "Um dia, no futuro, você ficará orgulhoso do povo do seu país". "Olha", respondi, "você não conhece as pessoas que governam meu país; um dia você vai se envergonhar de tudo o que pensou sobre essas pessoas". E um ano mais tarde tudo isso aconteceu quando fez as declarações a favor de Heberto Padilla.
El País - Gabriel García Márquez acredita, entretanto, na revolução castrista.
Infante - Acredita em Fidel. Viu-o e ficou fascinado para sempre.
El País - Fidel foi um comunista sincero?
Infante - Só foi fidelista. Em 1948, disse a um companheiro que tentava convertê-lo ao comunismo: "Veja, Walteiro, serei comunista no dia em que for Stálin". Disse uma grande verdade.
El País - Qual o seu sentimento em relação aos Estados Unidos?
Infante - Mesclado. De agradecimento e de desconfinaça. Não tenho muita confiança em que os políticos americanos tenham bastante inteligência para lidar com os problemas do mundo. Mas agradeço por serem eles e não a União Soviética que mandam no mundo.
El País - No caso da Baía dos Porcos, Castro ganhou porque John Kennedy decidiu não intervir. Os americanos deixaram vocês sozinhos.
Infante - Responderei com uma frase cubana: Kennedy ficou com medo. Queria erradicar o castrismo, mas como acontece agora na Bósnia, desejava fazê-lo sem derramar a menor gota de sangue americano. Por isso enviaram uns cubanos mal treinados.
El País - Na época onde você estava?
Infante - Estava com a revolução. Fui correspondente nessa batalha. Vi a uns sete metros das águas jurisdicionais um couraçado americano, um porta-aviões e vários cruzadores. E não se moveram.
El País - Suponho que admite a possibilidade de que nos primeiros anos Castro estava comprometido com o bem de seu povo e que mais tarde o desejo de se manter no poder deteriorou esse ideal.
Infante - Isso são restrições. Ele identifica o bem do povo com seu próprio bem. Isso, que é comum entre os políticos, se torna muito perigoso quando a gente não pode deixar de votar neles.
El País - Marc Chagall, exilado em Paris foi um grande pintor durante anos, e se nutria de suas lembranças da Rússia. Quando isso se esgotou deixou de ser um grande pintor. Você teme que o passado se esgote?
Infante - Isso não é totalmente verdade, não aconteceu com Picasso.
El País - Mas você reconhece que sua produção literária se nutre do exílio?
Infante - É verdade. Nunca sofri uma avalanche tão grande de recordações e imagens e de palavras como quando fui a Bruxelas. A neve não me deixava respirar. Nas noites em que não podia sair na rua tive uma invasão de recordações. Nunca me aconteceu isso nem antes nem depois. "Três Tristes Tigres" nasceu daí. Há um escritor, Vintila Oria, que mantém a tese que Deus nasceu no exílio. Mas acontece que o primeiro escritor exilado de que se tem notícia é Ovídio, desterrado por Augusto por motivos obscuros. Ovídio, em seus exílio, escreveu livros que foram publicados depois de sua morte, mas nenhum era interessante. "A Arte de Amar" e "A Metamorfose" foram publicadas em Roma.
El País - Esse é um caso de exílio pouco criativo.
Infante - É verdade que a tese contrária é interessante. Se pensarmos nos escritores deste século é espantoso a número de exilados. James Joyce se exilou porque não suportava os irlandeses, e logo se dedicou a elogiá-los em Trieste; Proust se exilou em sua própria casa; Nabokov... Há muitos grandes escritores que só o foram no exílio. Mas isso é verdade neste século, não no Século de Ouro, por exemplo. Acontece porque esse é o século dos totalitarismos.
El País - A volta a Cuba já não parece algo impossível, nem mesmo longínquo –isso lhe dá medo?
Infante - Voltaria a Cuba, mas não pelo primeiro vôo. Voltaria à Havana, não à Cuba. E essa volta seria como encontrar uma mulher extraordinariamente bela e jovem com 60 anos. Não me dá medo, me dá pena. Penso nisso. Houve um tempo em que voltava em meus pesadelos. Ia voar e ao chegar no aeroporto, o avião já havia partido, ou não encontrava o departamento de vistos. Com o passar do tempo, as coisas más se desvanecem. Isso é a nostalgia: o mal se apaga, não o bom, e a gente se lembra com prazer do passado.
El País - Sim, mas você não cedeu em nenhum momento. Escreveu páginas e páginas contra o regime de Castro. Tem sido o dissidente por excelência.
Infante - De fato, escrevi muito. Sem dúvida, para muitos cubanos no exílio, eu não era suficientemente duro. Assim é preciso ver quem estabelece as regras do jogo. Fui muito criticado.
El País - Talvez o critiquem por não ter ido morar em Miami.
Infante - Nunca me interessou como lugar para morar.
El País - O fato de lá estarem os cubanos foi um motivo para não ir?
Infante - De maneira nenhuma. O motivo foi que em Miami, que é um encrave cubano, eu não tenho um espaço intelectual. Tenho outros interesses. Em Miami há uma coisa extraordinária: souberam dar continuidade a Cuba, souberam fazer fortuna. Mas nunca houve um verdadeiro ambiente cultural.
El País - Por que os emigrantes cubanos abriram caminhos nos Estados Unidos com mais êxito que os demais latino-americanos?
Infante - Há a herança espanhola, que é excepcional nessa região do Caribe: os cubanos são muito trabalhadores. As populações de Porto Rico ou de São Domingos não acreditam que com o trabalho se pode viver melhor. E é preciso dizer de uma vez por todas que o capitalismo oferece oportunidades e os cubanos se aproveitaram delas. Quando me perguntam o que penso dos EUA, penso que apesar de todos os seus erros deve-se estar com eles. Você acredita que a Espanha teria absorvido 1,5 milhão de cubanos como os EUA fizeram?
El País - Mas o fizeram por razões políticas, queriam minar o inimigo e mostraar que ajudavam os cubanos enquanto que aqueles que viviam em Cuba viviam o embargo.
Infante - Sim, mas mesmo assim os absorveram, lhes deram oportunidade de trabalhar, aceitaram que a comunidade cubana se convertesse um um quisto dentro de sua própria comunidade.
El País - Quantos desses 1,5 milhão pensam em regressar a Cuba quando o castrismo desaperer?
Infante - Há uma pequisa que indica cerca de 12%. Me parece que fizeram essa pergunta a pessoas da minha geração ou da posterior, onde se encontram aqueles que desejam voltar. Mas os jovens não querem voltar.
El País - Por que a revolução aconteceu em Cuba e não em outro país da região?
Infante - Cuba, no século 16, era um centro obrigatório para todo navio que viajava para a Flórida ou a Luisiana, ou que fosse para o Sul do continente. Isso a transformou num grande centro cultural e econômico, e determinou o caráter cubano. Não é por acaso que a revolução aconteceu em Cuba. Castro não é um fenômeno de azar; é o processo político que devia acontecer antes ou mais tarde. Quando, em 1762, os ingleses invadiram Havana, os espanhóis a consideravam tão importante que trocaram uma só cidade por toda a Flórida, que ia na época até o centro dos Estados Unidos.
El País - Você sempre criticou Castro, mas reconhece que ele fez coisas interessantes nas áreas de saúde e educação?
Infante - O que acontece é que ninguém é eternamente um estudante. Quando se chega aos 30 anos já não precisa do ensino gratuito. Tampouco é possível que esteja sempre doente.

Tradução de Lise Aron

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