São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Conceição vê economia com olho otimista

GILSON SCHWARTZ-
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Desespere-se: as engrenagens do mundo patinam, tudo assincronia, a catástrofe não vem por um fio. Ainda assim, anime-se: ao menos se as elites abandonarem a crença autofágica no liberalismo, se desenharem um projeto com começo, meio e fim. Os textos, se não a vida de Maria da Conceição Tavares, responde a essas duas pulsões rivais.
"(Des)ajuste Global e Modernização Conservadora" reúne dois textos de Conceição e um do cientista político José Luís Fiori numa ofensiva (mais uma) rumo à crítica e à sedução das elites perdidas, do Brasil e do mundo. Conceição, a musa do desespero estrutural, disseca os desajustes do capitalismo contemporâneo com precisão de relojoeiro suíço e paixão de militante, agora, petista.
O principal resultado da tensão entre crítica e esperança é a multiplicação das dúvidas. O próprio título do livro abre o jogo dessa ambiguidade, colocando o (des)ajuste entre parênteses e assim reconhecendo que, apesar de toda crise, afinal talvez irrompa um ajuste de verdade, como se a história estivesse condenada a um final objetivamente feliz e indiscutível no futuro.
Quanto ao passado, Conceição disseca desajustes sem ilusões. Erraram os neoliberais que apostaram no ajuste automático do sistema de taxas de câmbio flutuantes. Para provar esse ponto ela descreve minuciosamente a crise do padrão monetário internacional desde a década de 70.
Mas na hora de concluir e apontar as linhas do futuro, Conceição reafirma a precariedade do presente: "Não está terminado o processo de reestruturação das economias centrais no que concerne a estabelecer claramente uma nova divisão internacional do trabalho ou uma nova ordem econômica internacional, na qual se confirme, de vez, a perda da hegemonia norte-americana" (p.52).
Se a análise das estruturas conduz a essa (in)conclusão, nem por isso Conceição desanima ao reafirmar suas crenças. Assim, mesmo se a crise global ainda não tem desfecho, seria possível afirmar as vantagens do "capitalismo organizado" (modelos como Japão e Alemanha). Apesar do futuro estar mais incerto do que nunca, Conceição insiste na lição de que fracassaram mais os países anglo-saxões (Inglaterra e EUA) que pregaram e universalizaram as políticas ultraliberais de ajuste e desregulamentação.
Esses textos ainda são, portanto, muito filhos dos anos 80. Afinal, as crises européia e japonesa nesses anos 90 contrariam justamente a tese central de Conceição, de sucesso relativamente maior dos capitalismos organizados. Ela mesma reconhece que o jogo ainda não acabou, deve até estar longe do fim. E a desorganização em curso é econômica, política e ideologicamente crescente.
Parece mais fácil identificar perdedores e desajustes que reconhecer vencedores aptos a recosturar o mundo com a linha da história. E Conceição passa muito rápido por casos como China e India, que como o Brasil talvez escapem completamente tanto aos modelos neoliberais quanto à confiança cepalina na superação racional das crises estruturais.
A análise da economia brasileira, no segundo ensaio do livro, avança com a mesma verve. A crítica ao neoliberalismo é implacável e objetiva. Os ajustes do Chile, do México e da Argentina são despidos de toda a mistificação ideológica que assumiram ao longo dos anos 80. A revisão dos fracassos de política econômica no Brasil é contundente, mas ao final o "pensamento progressista" (sic) retorna à defensiva. Reconhece acacianamente que "ao contrário dos que ainda se dividem entre soluções exclusivamente fiscais ou monetárias e abominam o controle cambial e de preços, só um ataque conjunto, envolvendo várias decisões e políticas simultaneas, poderá encaminhar o problema da estabilização progressiva" (p.104-5).
Ocorre que a realização na Terra dessa sincronia virtuosa dependeria de uma Vontade menos cega que as elites seduzidas pela selvageria neoliberal. No Brasil, o máximo que se consegue é a resistência corporativista a qualquer ajuste. Fica difícil acreditar, na falta dessa Vontade que coloque os fins coletivos em primeiro plano, na emergência de algum projeto objetivamente melhor que a cegueira neoliberal.
Pragmaticamente, José Luis Fiori argumenta a favor de um "mix" de políticas "mezzo" liberais, "mezzo" desenvolvimentistas no ensaio que fecha o livro. Para Fiori, o "novo Estado" deve ser "ágil e autônomo sem ser extenso e particularista como foi o Estado desenvolvimentista", sendo ao mesmo tempo "forte sem ser autoritário" (p.167).
Para se chegar a esse Estado virtuoso, maquiavélico no bom sentido, Fiori lista reformas inadiáveis na burocracia estatal, na estrutura partidária e na ordem tributária. Ainda assim, descarta soluções rápidas, de direita ou de esquerda. Nem golpe nem revolução, mas um "processo de conflitos e negociações, capaz de sustentar de forma estável as decisões de curto e longo prazos indispensáveis ao êxito do programa de estabilização com crescimento equitativo e modenização competitiva da estrutura produtiva do país, sem otimismos ingênuos, mas longe do catastrofismo." (p.187) Pede, enfim, uma modernização um pouquinho menos conservadora.
Tudo isso parece mais fácil de enunciar, como a regra "in medio virtus" (a virtude está no meio, longe dos extremos) e quase impossível de realizar. As posições intermediárias ou "de centro" tornam-se a cada dia mais fracas eleitoralmente.
O (e)leitor atento à crítica das estruturas aceitará as pílulas de otimismo histórico apenas sob uma condição: tornar-se junto com Fiori e Conceição uma espécie de crente na ressurreição do Estado e das elites.

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