São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Gen(ética)

Os rápidos avanços científicos nos campos da genética e da reprodução assistida colocam a humanidade diante da dura tarefa de estabelecer limites éticos que orientem sua ação nessas áreas. Da criação de Frankensteins à eliminação de flagelos que há milênios perturbam os homens, abrem-se perspectivas inéditas –e também perigosas– para uma espécie de símio com poucos pêlos que foi aprendendo a superar as adversidades de um mundo hostil e agora começa até mesmo a manipular sua própria natureza.
Contudo, é menos difícil mapear genes do que encontrar consenso sobre o que é ou não aceitável fazer. Os setores conservadores foram mais rápidos e o Reino Unido proibiu a gravidez pós-menopausa. A França pretende fazer o mesmo e limitar a fecundação "in vitro". Alemanha e Suécia também contam com legislações pouco liberais em relação à fertilidade. Nesses países, ao menos travou-se um debate. No Brasil, tramita um projeto de lei bastante restritivo sem que a comunidade científica e setores significativos da sociedade o tenham discutido, como revela o caderno Mais! da edição de hoje.
E a discussão é fundamental. Ética nada mais é do que atitudes abonadas pelos costumes de uma determinada sociedade numa época dada. Como se pretende legislar sobre matéria nova, ainda não integrada aos costumes, é preciso que haja um amplo e prévio debate com os mais variados setores do país.
Da mesma forma que não se podem ignorar os riscos da pesquisa científica nessa área, também não se pode esquecer dos inconvenientes de a lei amordaçar a ciência. Se o conservadorismo que impera em determinados setores sempre tivesse sido determinante, a Terra continuaria a "ser" o centro do universo. De resto, não é à toa que a Idade Média foi um dos períodos históricos em que se registraram menos avanços científicos.
No que concerne à reprodução assistida em qualquer idade, mesmo com o uso de óvulos de mulheres mortas ou fetos abortados, o bom senso sugere que a lei não intervenha. Trata-se de decisões individuais que não causam nenhum prejuízo à sociedade.
O que tem de ser debatido e regulado, isto sim, são os limites que devem ser impostos à manipulação genética com vistas à eugenia. Em primeiro lugar, é preciso compreender esta palavra sem a terrível carga que a funesta sanha nazista lhe emprestou. O casal que realiza um exame pré-natal a fim de determinar se um filho poderá ter alguma doença genética está apenas se utilizando dos conhecimentos científicos disponíveis. Nesse sentido, parecem não violar a ética técnicas que permitirem curar ou mesmo evitar filhos com um grande número de doenças determinadas pelos genes, como a hemofilia, vários tipos de câncer, diversas moléstias degenerativas e muitas espécies de deficiências mentais.
As coisas se complicam com a possibilidade de os pais –ou sabe-se lá quem– determinarem, por exemplo, o grau potencial de inteligência do filho, a cor de seus olhos ou estatura possível. Será que isso deve ser admitido? Há riscos de se criarem novos preconceitos e discriminações. No limite, pode-se até imaginar a perda de patrimônio genético da humanidade. O homem poderá, talvez, estar fechando as portas de sua própria evolução. Por outro lado, é tentador imaginar um mundo com pessoas mais inteligentes e saudáveis. A sociedade terá de debater cada uma dessas questões e muitas outras para tentar decidir o que é melhor.
E qualquer que seja a decisão, ela trará problemas. Imagine-se que se determine que a manipulação genética só é aceitável para evitar doenças. Então a tendência à obesidade deve ser considerada uma moléstia? E a calvície? Como se vê as questões são inúmeras.
O que importa é que o frágil macaco sem pêlos que parecia mais um engano da natureza aprendeu a conhecê-la e dominá-la em seu nível mais fundamental, o da mecânica da vida. Que tenha agora a sabedoria e o autoconhecimento necessários para impor limites a sua ação. O criador pode acabar lamentando profundamente a sua própria criatura.

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