São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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A toalha e o facão

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – As coisas estão ficando difíceis. Não me refiro aos artigos de primeira necessidade que sempre foram difíceis apesar das cestas básicas que peridiocamente entram em moda. Comentei anteontem a vantagem em não termos terremotos. E hoje acrescento outra vantagem: não temos (ainda) equatorianas como aquela que fez justiça com as próprias mãos e mutilou o marido que dormia, satisfeito, deixando-a acordada e insatisfeita. No Brasil, estamos no tempo da toalha. Mesmo assim, deve-se temer o que vem pela frente.
E eis que surge uma recordação nebulosa, vinda lá do fundo, da última gaveta da memória. Eu tinha seis ou sete anos, devia estar olhando a rua –distração principal dos meninos do meu tempo e que não viviam na rua. Era a passarela do mundo: por ela desfilavam os bondes cheios de pernas como no poema do Drummond, passavam os vendedores ambulantes, o homem que vendia o jornal das modinhas e era obrigado a cantar os hits da época para atrair a freguesia. Passava o sorveteiro, a leprosa que pedia esmola, o mata-mosquito com sua bandeira amarela e sua lata de creolina, passava tudo e todos, era a televisão do meu tempo, a cores e ao vivo.
Pois um dia passou um homem correndo, de cueca, apavorado, urrando por socorro. E atrás dele vinha a mulher, de facão em punho. Eu os conhecia: era o seu Macedo, dono de sapataria na rua Camerino. E a mulher era dona Rute, sua esposa, notável pelas surras que dava nos próprios filhos e ameaçava dar nos filhos dos outros.
Não compreendi a cena. Lembro apenas que o fato foi muito comentado entre os adultos. Não sei o que o seu Macedo fez ou deixou de fazer para provocar a cólera e o facão da mulher. Sei que os adultos tinham um riso misterioso e calhorda quando falavam no assunto. Meu pai chegou a definir a situação no chamado "grosso modo" ao dizer para outro vizinho: "O Macedo merecia, o diabo é se a moda pega!".
A moda não pegou, meu pai temeu em vão. Tantos anos depois vem essa equatoriana e relança o produto no mercado. Ainda bem que temos similar nacional e uma surra de toalha é pouca pena para tão grave dano.

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