São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 1994
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Novas formas de responsabilidade política

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Todo trabalho está ligado a uma ética, inclusive aquele do intelectual. Assim, o professor se torna responsável pelo bom desempenho de suas aulas e ainda por tudo o que contribui para a formação do caráter de seus alunos; o pesquisador se torna responsável tanto pela fidelidade de seus dados quanto pelo sentido social de suas invenções. Este último ponto é muito delicado.
Seriam os inventores da mecânica quântica responsáveis pela fabricação da bomba atômica? Obviamente que não, simplesmente porque os textos que publicaram poderiam ser lidos por qualquer especialista, enquanto os responsáveis pelo projeto Los Alamos conscientemente aceitaram trabalhar num campo de concentração, onde suas descobertas foram guardadas a sete chaves. Mas este constrangimento não se torna legítimo e moralmente defensável em situação de guerra, quando a pátria está em perigo? Não, pois os cientistas do projeto Los Alamos não deveriam ter transferido para alguns generais aguerridos a responsabilidade de decidir como e quando a bomba seria lançada, pois somente eles tinham a idéia, embora vaga, do horror que uma explosão atômica causaria ao cair sobre uma população civil.
Não há dúvida de que esses cientistas estavam metidos numa situação muito difícil, pois se não a fabricassem, os nazistas o fariam, e se sabe que não teriam qualquer escrúpulo em lançá-la sobre seus inimigos. Mas isto não retira a responsabilidade dos cientistas alemães que porventura tivessem inventado a bomba. Eu mesmo confesso que, diante desse impasse, teria colaborado com esse projeto, mas ao menos consciente de que, se perdesse a alma, tentaria salvar a pátria.
Essas considerações vêm ao caso neste momento em que os avanços da biologia molecular começam a pôr nas mãos dos homens instrumentos para intervir na constituição de suas próprias identidades biológicas e sociais. Não é à toa que as questões da moralidade pública encontram na área médica os exemplos mais estimulantes ao pensamento.
Se os cientistas se tornam responsáveis por suas invenções, na medida em que transferem a políticos e burocratas um poder de decisão cujas consequências estes últimos nem conhecem, seria o caso de transferir mais poder político para as corporações científicas? De modo nenhum, pois se estaria assim transferindo a elas um poder que provavelmente utilizariam privadamente, de modo mais perverso do que os militares e os políticos. Em contraparte, o saber especializado não se divulga sem deformações.
O que fazer? Como imaginar modos alternativos de controle sobre o poder que a ciência contemporânea está constituindo? Em que termos pode ser formulada a responsabilidade política daqueles que decidem sobre o destino dessas novas invenções fantásticas? Note-se que o poder sempre depende do saber, ainda que de uma forma indireta. Se de fato, como argumenta Hobbes, o homem mais fraco é capaz de matar o mais forte pela astúcia, esta se relaciona intimamente com o tipo de conhecimento disponível para cada um. A escolha do punhal ou do veneno já demanda uma técnica.
O extraordinário desenvolvimento contemporâneo da ciência e da tecnologia criou um poder de intervenção social que ultrapassa as possibilidades de manipulação dos indivíduos e dos políticos isolados. Ainda mais, os progressos dessas novas ciências requerem a associação de Estados nacionais para arcarem com os custos da invenção científica e tecnológica, o que implica uma forma de negociação política inédita, na medida em que é mediada por cientistas organizados. É como se um corpo científico e tecnológico ganhasse autonomia e passasse a se relacionar com o corpo político.
Qualquer poder capaz de definir um futuro somente se exerce se se apropriar dele, se colocar sob seu controle as matrizes da ciência e da tecnologia. Ora, isto não se fará democraticamente sem transformar a própria representação política. Não são os atuais representantes do povo os únicos que poderão legitimamente tomar decisões políticas e moralmente responsáveis sobre questões cujas raízes já ultrapassam os limites do Estado-nação. Se hoje muitos sistemas políticos são depurados, se a mera gatunagem se torna muito mais difícil –e isto não acontece apenas no Brasil mas ainda na Itália, no Japão etc.–, não é por isso que as atuais formas de representação política vão ser capazes de abranger o campo de responsabilidade que as novas invenções científicas e tecnológicas estão articulando. Toda uma rede de representações indiretas –como os comitês de ética médica, instituições ecológicas etc.– se arma no sentido de socializar responsabilidades a respeito das decisões que no fundo definirão nosso futuro.
A reforma política em curso não poderá ainda ser uma reforma da própria política, ao introduzir novas formas de mediações representativas? E me parece valer a pena perguntar desde já como responsabilidade e representação vão se misturar com as vicissitudes do conhecimento, de sorte que a unidade do corpo político possa encontrar novos fundamentos.

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