São Paulo, domingo, 30 de janeiro de 1994
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Como estoques de alimentos apodrecem os estoques de alimentos

ALOYSIO BIONDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Milhões de toneladas de arroz, feijão, milho, ou café apodrecendo nos armazéns. Qual brasileiro não viu essa notícia nos jornais, ou imagens dramáticas na TV algumas dezenas de vezes nos últimos meses? Poucos escândalos provocam tanta indignação quanto esse, por motivos óbvios: perda de comida em um país onde há fome, ou onde a carestia é brutal, etecetera e tal. Com essa carga emocional, o problema é constantemente utilizado para repisar que "tudo é culpa do governo, os estoques são dele, a esculhambação é total" e por aí a fora. Em resumo: o apodrecimento de colheitas também tem sido usado como arma na campanha de desmoralização do Estado, no Brasil.
Mais uma vez, mente-se descaradamente. A verdade é exatamente o contrário. O apodrecimento de colheitas, milhões de toneladas, é o resultado da atuação dos grupos empresariais que, com a ajuda de ministros e formadores de opinião, tomaram de assalto a economia brasileira, e promovem verdadeiro saque dos bens públicos em todas as áreas –inclusive alimentos. São os grupos que fingem defender a "privatização", mas o que procuram é manter negócios bilionários, às custas da classe média e do povão brasileiros. Neste momento em que, da boca para fora pelo menos, a equipe FHC se preocupa com o abastecimento de alimentos, as aberrações criadas na área precisam ser relembradas –e enfrentadas com providências:
Armazéns – Aponta-se como um "escândalo" que o governo tem centenas de armazéns gigantescos devidamente fechados, vazios, no país todo. Enquanto isso (e aqui o locutor treme os lábios, de indignação), "paga bilhões de cruzeiros para guardar as safras em armazéns particulares". Como acrescentaria o comentarista-camaleão: "outra prova da desorganização do Estado brasileiro, esse sanguessuga que é sustentado pela iniciativa privada". Falta de informação, de um lado. Falta de outras coisas, de outro lado.
Os armazéns do governo estão vazios, mas não por incompetência. Trata-se de decisão de política econômica do governo Collor, devidamente anunciada, e engolida e agora "esquecida" pelos formadores de opinião. Como em outras áreas da economia, o governo Collor decidiu que não era a função do governo manter armazéns para guardar seus estoques de safras. Que o setor também deveria ser privatizado. E passou à ação: retirou milhões de toneladas de cereais de seus armazéns, e transferiu-os para armazéns particulares. Vendeu armazéns a empresários. Tudo, decisão oficial. Transformada na tal "privatização" do Estado, isto é, os negócios públicos tomados de assalto pelos grupos privados.
Fraudes – Há muitas décadas, existe no país a lei de preços mínimos agrícolas, destinada a defender o produtor e o consumidor. Com ela, o governo é obrigado a comprar as colheitas sempre que haja superprodução (ou mesmo manipulação) e os preços cheguem a cair abaixo de determinados níveis, arruinando o produtor. Essas colheitas formam então os chamados "estoques reguladores", que o governo deve vender em situações opostas, isto é, quando haja escassez ou manobras especulativas, que levem os preços às nuvens, prejudicando o consumidor. Esses estoques sempre foram guardados em armazéns oficiais e, na falta deles, complementarmente em armazéns privados.
Há décadas, como previsível, tem-se notícias de "desaparecimento" de estoques, devidamente roubados pelos donos dos armazéns, ou desviados pelos produtores e suas cooperativas. Não se tem notícia de nenhuma grande condenação por essas fraudes toleradas há décadas.
Roubalheira – o roubo dos estoques do governo nos armazéns particulares, porém, atingiu seu auge nos últimos anos, em meio à onda de "privatização", em que "o Estado é o demônio, os empresários são anjos". A prepotência, o deboche dos cúmplices dos assaltos contra o povo brasileiro chegou a tal ponto, que o Ministério da Agricultura, no governo Collor, não se limitou a arquivar centenas de processos contra os desvios de estoques de alimentos do governo. Não. Isso era muito pouco. Era preciso aproveitar a falta de reação deste bando de cento e vinte milhões de bovinos otários, e a conivência dos "camaleões". Os ministros de Collor não só resolveram fazer acordo com os fraudadores, como decidiram negociar o perdão de até metade de suas dívidas –isto é, metade do valor dos alimentos roubados. E tudo isso foi devidamente anunciado, noticiado como a coisa mais natural do mundo.
Justificativa apresentada: a Justiça é muito lenta no Brasil, vai demorar muitos anos para condenar os ladrões, então o melhor é fazer o acordo, retirar a queixa-crime, receber um pouquinho do dinheiro. O mesmo "argumento" que os ministros continuam a usar para oferecer imensas vantagens aos sonegadores de impostos... E todos engolimos.
Virada – No começo do governo Itamar, a decisão de perdoar os ladrões de estoques foi anulada, reiniciando-se o processo criminal e de cobrança. Mas... Houve várias mudanças de ministro da Agricultura e de presidente da Conab, empresa de abastecimento. Tudo parece engavetado.
Aluguel – Então, fique claro: é "política oficial", exigida pelos pretensos privativistas, usar os armazéns particulares, onde também os estoques apodrecem ou evaporam. E o aluguel? Mais baixo, graças à "eficiência empresarial"? Não. Funcionários do governo denunciaram os preços altíssimos cobrados pelos armazéns privados –inutilmente (é facil desmoralizar os funcionários, com os deformadores de opinião acusando-os de "corporativistas" mesmo quando eles estão defendendo os interesses da sociedade).
Apodrecimento – Além do uso obrigatório dos armazéns privados, outra decisão oficial de política agrícola é que burramente leva ao apodrecimento dos estoques. No passado, a venda de estoques do governo às vezes sofreu distorções prejudiciais aos agricultores: eles foram lançados no mercado em momentos inoportunos, derrubando demais os preços. Mas as regras, necessárias, que surgiram depois também contêm aberrações, que chegam às raias do inacreditável. Dentro da onda "privatizante", ou "neo-liberal", defende-se a tese de que o governo deve sempre cobrar preços que cubram seus custos, isto é, não deve subsidiar, pois isso provoca rombos no Tesouro. Essa ladainha neo-liberal finge ignorar os subsídios que EUA e outros países ricos dão à sua agricultura –e empresas.
Ela criou uma aberração que o governo somente pode vender os estoques de alimentos (para combater manobras especulativas e conter a inflação) levando em conta todos os custos dos estoques. Isto é: o preço pago na compra da colheita, mais o preço do aluguel do armazém, mais os "juros" do capital empatado, e que é corrigido pela TR (que também já inclui juros). Um doce para os "bovinos otários" descubrirem o que acontece. É aritmético. Quanto mais antigo um estoque, mais "caro" o produto fica, porque só pode ser vendido incluindo-se todos aqueles custos. Resultado: o governo vende, por exemplo, o arroz da safra 91/92, mas não consegue nem oferecer ao mercado o arroz estocado da safra 89/90, e agora caríssimo. Claro. O encalhe é inevitável. Um dia, nem a podridão. Burrice? Olhando ao redor, há quem duvide que seja só isso. O essencial é mudar essa regra imediatamente.
Uma aberração leva a outra. O ministro da Fazenda e o líder do seu partido, José Serra, dizem que a rejeição, pelo Congresso, do aumento do IR das empresas ameaça o Plano FHC. Ora, a perda (??) seria de algo como 400 milhões de dólares. No ano inteiro. Isso já foi coberto, três vezes, pelo "excesso" da arrecadação de janeiro, que é a maior dos últimos dez anos e superou as previsões em US$ 1,2 bilhão. Em um mês. By the way: a virtuosa equipe econômica tem sido muito habil em vender sua imagem de "santarrona" aos deformadores de opinião. Será que seus métodos de negociação diferem mesmo dos adotados nos períodos Fiúza/João Alves & Cia? Como explicar que o ministro tenha abrandado violentamente as condições de pagamento das dívidas dos Estados para com o Tesouro? No ano passado, os governadores deveriam aplicar 11% da receita líquida na redução da dívida. Agora, há um acordo para reduzir o percentual a 9%. Mais 2% para os governadores gastarem? Não, caros homens-de-boa-fé. Mais 6%. Algumas centeninhas de milhõezinhos de dólar, né? Neste ano, pela lei em vigor, o desembolso dos Estados seria de 15%. Pois é. Como se vê, é bom ser ministro-ditador. É dando aos poderosos que se recebe.

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