São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 1994
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O que Zico quis dizer para a bola

MARCELO FROMER; NANDO REIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que Zico quisdizer para a bola
MARCELO FROMER e NANDO REIS
Depois de passadas duas semanas, podemos refletir com mais serenidade sobre o episódio que envolveu Zico e a bola, tendo uma cusparada como intermediário. Como sair em defesa do mestre Zico? Muito fácil! Vamos ao jogo: final do primeiro campeonato profissional do Japão. Em campo o Kashima Antlers de Zico e o Verdy Kawasaki.
Zico já havia tentado fazer um gol de letra e a bola caprichosamente preferira evitar o caminho das redes. Enquanto isso, o goleiro do Kashima em três oportunidades fazia defesas espetaculares como um verdadeiro samurai, esticando-se no ar com o rigor plástico de um Bruce Lee de chuteiras.
Até que, sobre Alcindo, baixou a luz da sapiência milenar, transformando sua calva franciscana numa auréola sublime e translúcida de inteligência. Matou a bola no peito e sapecou um tirambaço no lado esquerdo do goleiro: l x 0!
Mas a câmera só focalizava Zico, e seus olhos já exprimiam um olhar alucinado. O jogo caminhava em ritmo fortíssimo com 50 mil japoneses idênticos cantando incessantemente. Numa jogada confusa, Zico se estranha com o jogador evangélico Bismarck. Alguma coisa estava prestes a explodir. Até que explodiu, e explodiu como uma pequena Hiroshima úmida.
Depois de ver um pênalti inexistente arrancar as chances de seu time conquistar o título, Zico, como se estivesse em transe, correu em direção à bola já postada na marca do cal e disparou uma solene cusparada! Uma cusparada simbólica que continha, também, toda a sua indignação contra as arbitragens que vinham interferindo assintosamente nos resultados.
Talvez naquele momento Zico tenha enxergado no lugar da bola alguma outra coisa muito mais grave. O que será que o Zico viu no lugar da bola?
Talvez tenha visto naquele pênalti uma semelhança com aquele pênalti que ele mesmo quis bater contra a França em 86. Talvez tenha visto naquela bola a dor que o seu joelho sentiu quando ele foi covardemente arrebentado por aquele zagueiro que ninguém nem sequer lembra o nome. Talvez Zico tenha visto naquela bola a representação das duas Copas que o Brasil não conquistou, mas que o Brasil inteiro jamais vai deixar de lembrar com saudades.
Talvez naquela bola, Zico tenha resolvido descontar toda a sua exaustão com as coisas que ele tentou modificar na promíscua administração do futebol do Brasil e não conseguiu.
Não sabemos, ninguém nunca saberá o que se passou na cabeça do Zico quando ele correu decidido a cuspir naquela bola no Japão, e nem quando ele correu algumas centenas de vezes em direção à torcida para comemorar a feitura de qualquer um de seus gols inesquecíveis.
Nós só podemos saber que nós não somos Zicos, e humildemente reconhecer que algumas coisas nesse mundo são privilégios de uns poucos gênios, que são capazes de surpreender a todos com suas atitudes inesperadas.
O que o Zico quis dizer à bola através da sua saliva é assunto estritamente confidencial. O que o Zico fez está feito e não cabe mais a nós discutir.
Quem sabe aquele nobre cuspe não tenha molhado a bola para que ela deslizasse com mais suavidade em direção ao gol do seu próprio time?
Quem sabe?

Marcelo Fromer e Nando Reis são músicos do Titãs

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