São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 1994
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'Capitalismo Selvagem' ironiza telenovela

JOSÉ GERALDO COUTO; OTÁVIO DIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

"Capitalismo Selvagem", que tem pré-estréia amanhã, promovida pela Folha, é o segundo longa-metragem de André Klotzel. A exemplo do primeiro, "A Marvada Carne" (1985), sua estrela é Fernanda Torres.
O filme conta em tom irônico a história de um empresário inescrupuloso (José Mayer) que descobre de repente, graças a uma jovem jornalista (Fernanda Torres), que é o único sobrevivente de uma tribo indígena dizimada ( leia texto abaixo).
Nesta conversa com a Folha, à mesa de um restaurante paulistano, Klotzel, 40, e Fernanda, 28, falaram sobre o filme, teatro, cinema, novela e índios.
*
Folha - Uma coisa intrigante em "Capitalismo Selvagem" é que, como o filme alterna vários gêneros, a interpretação dos atores também muda...
André Klotzel - Cada cena tem uma situação diferente. A cada mudança de cena, parecia que a gente estava fazendo outro filme. A cena do tapa, por exemplo, parece de novela mexicana. Outras são mais documentais. Como o filme constrói sua linha em torno da citação de um monte de coisas, cada cena tem um clima próprio. Mas tem coisas que seguram: o José Mayer, por exemplo, mantém a mesma linha até o fim. Agora, toda a transição está na Fernanda...
Fernanda Torres - Meu personagem vai caindo irremediavelmente na paródia. No começo, ela é uma jornalista toda independente e tal, mas, como toda mocinha, "o amor a faz sucumbir à vida" (risos). Aí, não tem jeito. A coisa é irônica mesmo.
Folha - Sua atuação em "Capitalismo" brinca com a dramaturgia das novelas. Você tem uma relação de "amor e ódio" com a TV, como outros atores?
Fernanda - Não, de jeito nenhum. Só que depois de "Selva de Pedra" eu cheguei à conclusão de que não aguentava ficar oito meses numa novela, que sentia falta do trabalho de equipe, que não podia receber toda semana meu script, decorar e trabalhar que nem um cavalo durante a semana. Percebi que apenas gravava cenas, não tinha nenhum trabalho inteligente em cima daquilo. Alguns atores têm, conseguem elaborar e, apesar do trabalho gigantesco, ter autoria nas novelas. Eu não conseguia e isso me deu um susto enorme. Além do mais, peguei "a" novela: "Selva de Pedra". Era uma novela da Janete Clair de 20 anos atrás. É inacreditável. Eram cenas assim: eu numa cadeira de rodas, toda enfaixada, fugindo no aeroporto, berrando: "Cris, Cris!" (risos). Fazer Janete Clair é uma experiência que você nunca eseuece. Mas adoro novela, adoro ver. Acho genial que exista no Brasil essa indústria de imagens –e acho genial também que existam atores que sobrevivem fora dela. Acho genial que Regina Casé tenha ido para dentro da Globo e montado uma equipe para fazer algo diferente das novelas.
Folha - "Capitalismo" parece estar sempre prestes a cair no deboche, mas se contém...
Klotzel - Eu tinha o maior medo de fazer um filme que fosse parasita de um outra linguagem, que ficasse com cara de escracho de novela. A idéia era usar o melodrama de uma maneira insólita, mas não óbvia, reorganizar aquele repertório de outro modo.
Fernanda - Eu me lembro que o André me disse: "Eu queria fazer um filme que fosse todo falso."
Folha - Quanto tempo vocês filmaram na aldeia craô?
Fernanda - Três dias. Mas a gente filmou com os índios também em Brasília. Aliás, tem uma história maravilhosa. Havia os figurantes índios de Brasília, e no meio deles os índios de verdade. Uma hora vira o Adilson (Barros, ator do filme) para mim e pergunta: "Quem é índio de verdade e quem é figurante?" E eu: "Como é que eu vou saber?" O Adilson: "Os figurantes estão descalços e os índios de verdade estão de sandália havaiana" (risos). Depois a gente foi de avião para Palmas, no Tocantins, e de lá pegou dois carros para ir até a aldeia, no norte de Goiás. Em todas as cidadezinhas do caminho, multidões de mulheres nos cercavam, gritando, histéricas, por causa do José Mayer. As cidades telegrafavam umas para as outras: "Ele está chegando" (risos). A gente tinha que trancar o Zé na Prefeitura, sair com ele escondido no carro. O Zé Mayer é o galã número um do Centro-Oeste.
Folha - E na aldeia?
Fernanda - Foi a coisa mais legal da minha vida. Eu tinha filmado no Xingu o "Kuarup", mas no Xingu eles são ricos, são coloridos. Essa tribo craô é paleolítica mesmo. O lugar é lindo, a gente teve um contato afetuoso com eles. O André ganhou até nome: Poc'arrocpé...
Folha - Que quer dizer o quê?
Klotzel - Não sei.
Fernanda - Sabe, sim: é "casco de veado grande" (risos).
Folha - Teatro e cinema podem colaborar um com o outro?
Fernanda - Acho que os dois só têm a ganhar com uma aproximação. O teatro brasileiro está passando por um "boom" criativo, e isso pode ajudar o cinema. Por exemplo, o próximo filme do Waltinho Salles, em que eu vou trabalhar, vai ter um elenco todo de teatro, com o Luís Mello e um monte de atores bons de teatro. Além disso, ele chamou a Daniela Thomas para co-dirigir. É uma maneira de aproveitar esse espírito de equipe do teatro.
Folha - Como é que vocês vêem a tentativa atual de reerguer o cinema brasileiro?
Fernanda - Eu acho que, como não há indústria, a maravilha de um filme brasileiro estaria talvez num risco total de linguagem, num não-respeito às convenções. Como o Glauber fazia. Você vê "Terra em Transe" e fala: "Meu Deus, isso é 'Mad Max' misturado com Eisenstein!" Um desrespeito total àquela coisa de "aos dez minutos, a mocinha encontra o mocinho..." Qualquer filme "z" americano é melhor que uma tentativa de cinema convencional no Brasil.
Klotzel - Mas o problema econômico também influi nisso. O cinema brasileiro perdeu espaço no mercado porque caiu a frequência aos cinemas. Os filmes brasileiros –que chegaram a ter 30% do público– iam bem nos cinemas populares do centro, ou nas cidades do interior, e foram justamente esses que fecharam, enquanto abriam cinemas em shoppings. Além disso, o preço do ingresso triplicou nos últimos anos, o que fez com que o cinema –como tudo no Brasil– se tornasse algo de acesso restrito a uma pequena parcela, que é justamente aquela que está mais condicionada pelo cinemão americano, por enlatados, e que não tem abertura e disposição para ver outra coisa. Quando eu fiz "Capitalismo Selvagem", eu sabia que não tinha mais sentido fazer um filme para o público que viu "A Marvada Carne", porque esse público não existe mais.
Fernanda - Acho que está na hora de um "clic", uma sacação criativa como a que o Glauber teve nos anos 60 e fez o cinema brasileiro saltar do neo-realismo para uma coisa épica. Senti um cheiro dessa sacação no "Ilha das Flores", do Jorge Furtado...
Klotzel - O cinema brasileiro é maníaco-depressivo, como o próprio Brasil (risos). Ele alterna momentos de grande euforia com outros de depressão arrasadora. O Brasil é assim. Você pode ler no cinema o espírito do que está rolando. Se não houver um mínimo de auto-estima do país, o cinema brasileiro vai continuar em baixa.

Colaborou Otávio Dias, coordenador de Artigos e Eventos.

LEIA MAIS
sobre cinema brasileiro à pág. 5-6

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