São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 1994
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Amazônia, índios e missionários

RUBENS RICUPERO

A Amazônia tem a infelicidade de muitas vezes só merecer a atenção da mídia nacional em notícias que apelam muito mais para o emocional do que para o racional, partindo com frequência da leitura apressada de fatos ou suposições. É o desdobramento negativo de uma história regional sempre enriquecida por lendas e mitos. Trata-se de atitude que o homem tende a adotar quando confrontado com cenários nos quais o desconhecido prevalece sobre o conhecido, o inacessível sobre o acessível, o mediato sobre o imediato –passar do terreno do concreto para o do imaginário.
Neste artigo, percorro o caminho inverso. Parece-me útil começar pelo texto da Constituição Federal:
"Art. 231. Parágrafo 3.º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei."
Não procede, por conseguinte, a afirmação corrente (decerto incentivada pela perspectiva da revisão constitucional) de que, nas reservas indígenas, é proibida a exploração das riquezas do subsolo. Consequentemente, tampouco é verdadeira a idéia de que interesses escusos teriam inspirado a definição das áreas indígenas com o propósito de abranger reservas minerais que ficariam "congeladas" para utilização futura. Além de conflitar com a letra da Constituição, essa tese representa um insulto aos especialistas e servidores que dedicaram suas vidas à identificação dos espaços ocupados tradicionalmente pelos índios. Se existisse, seria também uma jogada de considerável risco econômico, uma vez que a velocidade do progresso tecnológico pode fazer com que, de um momento para o outro, um novo material substitua e torne sem valor um determinado metal, por exemplo.
O impedimento real à exploração desses recursos é hoje a inexistência, ainda, de lei que a regulamente, conforme determina a referida norma constitucional, uma legislação que estabelecesse, entre outras coisas, compromissos de caráter econômico, social e ambiental que as empresas autorizadas a exercer atividades de mineração assumiriam em relação às comunidades indígenas. Penso, além da participação nas receitas, em benefícios como assistência médica, educação, prevenção da poluição e assoreamento dos rios, interveniência do Ministério Público na elaboração dos contratos firmados por tais empresas.
Feito esse esclarecimento inicial, evidencia-se a fragilidade do raciocínio que procura vincular tais "interesses escusos" na definição das reservas indígenas à presença de missionários estrangeiros. Na realidade, há muito tempo os missionários que vêm trabalhar na Amazônia são objeto de teorias conspiratórias jamais comprovadas de maneira consistente e definitiva. Não quero dizer, de modo algum, que essas pessoas estejam acima da crítica. Ao contrário, sustento que tal crítica deve ser feita, mas sempre de modo racional e objetivo. As acusações devem ser investigadas criteriosamente, para que se tomem as providências necessárias, caso comprovadas. Parecem-me pertinentes as preocupações com a possibilidade de que o proselitismo religioso dos missionários, ao mesmo tempo em que priva os índios de sua visão de mundo tradicional, não seja capaz de substituí-la por uma alternativa plenamente satisfatória. O índio ficaria assim perdido numa autêntica "no man's land".
Hoje em dia, este já não é um problema tão sério como no passado, uma vez que muitos, talvez a maioria do missionários, procedem a partir de visões antropológicas mais modernas, que determinam maior respeito pelas culturas autóctones. Ainda asim, esses possíveis prejuízos resultantes da ação missionária devem ser examinados e investigados, não com o ânimo de construir fantasias, mas de proteger efetivamente as nossas populações indígenas.
Evitemos repetir o erro histórico da expulsão dos jesuítas. Também eles, no século 18, foram acusados pela burocracia real portuguesa de estarem a serviço de interesses estrangeiros, de serem "agentes espanhóis". O passar dos anos viria demonstrar que, embora, como todos nós, tivessem seus defeitos, os jesuítas se sacrificaram pela liberdade dos índios que o colonizador pretendia escravizar.
A boa defesa dos interesses maiores do Brasil exige que sigamos permanentemente o caminho da razão, evitando os extremos sempre perigosos da ingenuidade, de um lado, e do exagero, do outro. No caso específico da Amazônia, é imperativo que sejamos mobilizados não mais pelos episódios de apelo emocional fácil e fugaz, mas pela necessidade de vencermos os muitos problemas concretos da região, aproveitando o seu imenso potencial e atendendo às mais justas expectativas dos mais de 17 milhões de compatriotas amazônidas.

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