São Paulo, segunda-feira, 31 de janeiro de 1994
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A pistola e a política

LUIZ FELIPE D'AVILA

O assassinato sempre foi um apêndice da política. Muitas vezes, não passa de manchete de jornal, explorada por alguns dias, mas que desaparece rapidamente do noticiário, sem deixar cicatrizes no sistema político. No Norte/Nordeste ainda é costume defender a "honra" a bala, pois a razão parece ser tão curta quanto um cabo de garrucha, como demonstrou recentemente o governador-pistoleiro Ronaldo Cunha Lima, ao atirar no seu rival Tarcísio Burity. Mas, às vezes, o assassinato faz parte de uma conjuntura política que vem amadurecendo; neste caso, o cadáver provoca um efeito catalisador, capaz de revolucionar os costumes políticos da sociedade.
Em 1929, a quebra da Bolsa de Nova York arruinou a economia mundial, inclusive a brasileira, que vivia basicamente da exportação de café. O descontentamento econômico juntou-se com a quebra do pacto da política "café-com-leite". O então presidente da República, o paulista Washington Luís, deveria indicar um mineiro para sucedê-lo, mas acabou escolhendo outro paulista, Júlio Prestes. A elite política se dividiu, e os dissidentes resolveram apoiar o seu próprio candidato, Getúlio Vargas. Como era de costume, o candidato do governo, Júlio Prestes, venceu as eleições e a oposição, indignada com a derrota, acusava o governo de fraude eleitoral. Os ânimos ainda não haviam se acalmado, quando o companheiro de chapa de Getúlio, João Pessoa, foi assassinado na Paraíba. A morte de João Pessoa acabou fortalecendo a oposição, culminando na explosão da Revolução de 1930.
Em 1954, o assassinato do major Vaz desencadeou a crise política que levou o Brasil ao fim da era Vargas. A oposição, liderada pel UDN, pretendia vencer as eleições presidenciais seguintes e por isso fazia uma campanha veemente contra o populismo e o nepotismo da administração Vargas. Sob a liderança de um dos homens mais brilhantes e virulentos do jornalismo brasileiro, o governo era diariamente bombardeado por Carlos Lacerda. Uma noite, ao entrar no seu prédio, dois assassinos abordaram o carro e tentaram matar Lacerda, mas acabaram acertando seu acompanhante, o major da Aeronáutica Rubens Vaz.
Indignada com a morte de um oficial, a Aeronáutica exigia uma apuração rigorosa do crime. Enquanto isso, Carlos Lacerda, ensandecido com o fato, continuava denunciando o "mar de lama" que corria nos porões do Palácio do Catete. Quando as provas começaram a apontar às figuras mais próximas do presidente como os mandantes do crime, Getúlio trancou-se no seu quarto e se matou.
Trinta anos depois, o processo de "impeachment" do presidente Collor desencadeou uma revolta nacional contra a corrupção e impunidade que reinavam no governo. Mas os tentáculos da corrupção já estavam tão enraizados na vida nacional que a destituição do presidente da República foi apenas a primeira etapa. O terremoto que atingiu o Executivo em 1992 voltou a abalar as estruturas da República em 1993; desta vez a vítima foi o Legislativo. O tremor foi desencadeado pelo assassinato da mulher de um ex-assessor da Câmara, José Carlos Alves dos Santos.
Frio e calculista, José Carlos teria presenciado o assassinato da sua mulher a golpes de picareta, o mesmo instrumento que ele usava para dilapidar o Orçamento da nação, de acordo com os interesses da quadrilha dos "sete anões". Seu depoimento caiu como uma bomba atômica no Congresso, que tivera a coragem de destituir o presidente da República, mas que até então não teve vontade política para limpar a própria casa. Foi necessária a confissão de um suposto assassino para que o expurgo no Legislativo começasse.
Outro assassinato que promete desencadear uma revolução no processo político é o de Oswaldo Cruz Jr., o presidente do Sindicato dos Condutores Rodoviários do ABC. A violência das disputas sindicais e uso político dessas entidades nos faz questionar se é possível que pessoas tão brutas e limitadas sejam capazes de sentar-se à mesa para negociar propostas sensatas e realistas com a lucidez que o cargo exige.
Infelizmente a pistola continuará fazendo parte da política, aqui e no resto do mundo. Entretanto, não podemos permitir que jagunços e pistoleiros cheguem a posições de liderança na política nacional. Quando isto ocorre, é preciso revisar o processo de seleção dos nossos representantes. Não podemos ter líderes sindicais fichados na polícia liderando trabalhadores, nem presidentes, governadores e parlamentares que pretendem mostrar que têm "aquilo roxo" das maneiras mais esdrúxulas, inclusive através da pistola. Isto é cangaço, e não democracia.
Hoje, além do combate à corrupção, o eleitor consciente exige uma drástica revisão na estrutura política do Estado. Os escândalos políticos, desencadeados pelas pistolas, demonstram que a deneneração da estrutura política atingiu níveis preocupantes, que ameaçam a própria democracia. Destituir Collor e cassar dezenas de parlamentares é apenas o início de uma reforma que tem de atingir níveis constitucionais. Neste sentido, a revisão da Constituição é fundamental para criarmos um regime democrático, sólido e eficiente. A Carta de 1988 estimula a corrupção, a sonegação, o corporativismo e a impunidade. Se não revisarmos suas premissas ultrapassadas e utópicas, a democracia estará condenada ao fracasso.

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