São Paulo, sexta-feira, 7 de outubro de 1994
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Concretistas fetichizam relações com a linguagem

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Continuo discutindo o artigo de Arnaldo Antunes (Ilustrada, 3/10) sobre minha intervenção na polêmica Augusto de Campos/Bruno Tolentino. Na coluna de quarta-feira passada, falei um pouco das relações entre forma e conteúdo na poesia, discordando do excesso de atenção que se dá, depois do concretismo, aos jogos de palavras, às coincidências do significante.
Relendo o artigo de Arnaldo Antunes, pensei numa coisa. Os princípios que ele invoca contra mim são muito certos e, afinal de contas, banais: o de que a poesia seja uma ``hesitação entre o som e o sentido", como diz Valéry –concordo com isso– e de que tudo se dá num ``corpo-a-corpo com a linguagem". Certíssimo também. Não poderia ser de outra maneira.
Invocar esses princípios não ajuda muita coisa. Pois o que estou criticando na herança concretista é o entendimento, a meu ver restritivo, do que seja ``hesitação entre som e sentido", ``corpo-a-corpo com a linguagem".
Defendi, no artigo que motivou a reação de Antunes (Ilustrada, 23/9), ``tudo o que de secreto e sensível possa haver no entendimento poético do mundo" –e dei alguns exemplos disso quarta-feira passada. Eis o que afirma meu adversário: ``Ora, qualquer entendimento poético do mundo passa pela linguagem: aliás, qualquer entendimento do mundo passa pela linguagem. Não existe pensamento sem ela. Portanto, o corpo-a-corpo com essa matéria é inerente à produção poética."
Neste caso, a trivialidade foi erigida em argumento. O que Arnaldo Antunes diz é óbvio. Mas é uma obviedade significativa.
A impressão que tenho é que os concretistas e seus herdeiros fetichizaram essas relações com ``a linguagem". De um ponto de vista mais dialético, eu diria que a linguagem ``é tudo" num poema e que ``não é" o poema. A influência dos concretos incide na primeira parte da proposição.
Quando a linguagem ``se volta sobre si mesma", quando o autor está interessado na materialidade do significante, se aplica na pureza formal da ``função poética" de Jakobson, pode acontecer uma coisa engraçada. O poema perde em expressão, desloca-se do conteúdo, vira artefato silábico.
O movimento concretista, em seus inícios, assumia explicitamente esse ponto de vista técnico. Tratava-se de depurar o poema do que tivesse de alheio à ``função poética" propriamente dita, de extravasamentos emocionais, de subjetivismo.
Daí, por exemplo, o apoio a João Cabral de Melo Neto, poeta ``antilírico", avesso ao confessionalismo. E a defesa recente de Augusto de Campos do Rilke das poesias-coisa.
O problema básico dos concretos é que eles tendem a tomar tudo ao pé da letra. Seja a poesia-coisa de Rilke, seja a ``objetividade" de João Cabral, o que está em jogo são visões personalíssimas, subjetivíssimas, do mundo. A ausência de exaltação pessoal, de dor-de-cotovelo, não impede que o poeta esteja transmitindo o que ele sente, o que só ele viu, o que ele acha da vida, do mundo, das pessoas.
Os concretistas surgiram criticando duas coisas: a verborragia emocional que ainda nos anos 50 esteve ligada à idéia de poesia e a pompa parnasiana da geração de 45. Mostraram-se mais modernos, mais críticos.
O erro que, a meu ver, persiste em sua intervenção é o de confiar exageradamente em uma solução técnica para os defeitos da poesia anterior. Tratava-se de renovar... a linguagem. Se as pessoas versejavam mal, eliminar o verso; se havia desleixo e facilidade vocabular, incidir na materialidade concreta de cada termo. E, se a atenção dada ao aspecto ``analítico-discursivo" da linguagem conduzia ao prosaísmo, tratava-se de compreender ``sintético-ideograficamente".
Passados 40 anos, e com todas as diferenças de percurso e de pesquisa no interior do grupo, as deformações iniciais persistem: a busca de novos meios de expressão descolou-se da ``expressão" para tornar-se pesquisa sobre a linguagem. Não sou, repito, contra o corpo-a-corpo com a linguagem. Mas isso é apenas uma condição da obra literária; estratégia extrema do autor, no seu corpo-a-corpo com o mundo.
Daí é que para mim não são tão importantes as ``diferenças" entre Augusto e Haroldo de Campos, por exemplo. O interesse pela materialidade do significante, exercitado no computador ou no Letraset, não é diverso do barroquismo metalinguístico.
Quando Haroldo de Campos, em ``Galáxias", escreve ``e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço... escrever sobre escrever é o futuro no escrever sobescrevo sobrescravo...", ou quando Augusto de Campos pretende a condensação de sua ``despoesia", ``dizendo o máximo com o mínimo", como quer Arnaldo Antunes, vejo apenas o fetichismo da metalinguagem, a pobreza de conteúdo.
Não estou separando ``forma" de ``conteúdo". Eles é que têm conteúdo de menos. Só se condensa poeticamente quando se tem muito a dizer. A idéia de ``concisão" e de ``rigor", tão enfatizada a partir do concretismo, é correta. Mas pode ter-se transformado num fetiche. João Cabral usa estrofes e mais estrofes para fazer poesia –grande poesia– em torno de um ovo de galinha. Concisão? Sim; mas é porque ele disse muita coisa.
Ressalto outro aspecto. Arnaldo Antunes fala do mérito que há ``na fragmentação dos núcleos vocabulares, na subversão ou, em alguns casos, eliminação da sintaxe; exploração de recursos não-verbais..."
Mas o que se ganha de um lado se perde em outro. Ainda na luta contra o ``analítico-discursivo", empobrece-se enormemente a sintaxe. O tom ``vovô viu a uva", ou seja, o espírito de cartilha, o aprendizado mecânico da ``função poética" exercem uma influência nociva sobre muito do que se faz hoje em dia. É claro que os melhores se salvam.
P.S.: No último artigo, fiz uma frase insultuosa: ``Qualquer analfabeto da PUC percebe uma aliteração". Peço desculpas pelo destempero; quando me arrependi de tê-lo escrito, já era tarde.

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