São Paulo, sábado, 15 de outubro de 1994
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Brasil pode se tornar uma Belíndia viável

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

B em no centro do Rio, perto do obelisco que fecha a av. Rio Branco, há uma estátua de Gandhi. Outro dia li uma pequena notícia de que dia 2 de outubro transcorria o 125º aniversário do nascimento de Gandhi, e que políticos e admiradores do Mahatma levariam ao seu monumento flores e, sem dúvida, discursos. Eu pretendia ir até lá, mas fiquei aguardando notícias mais convincentes ou alguma atenção da TV à homenagem.
Não saiu mais nada, e eu acabei esquecendo. Até agora não sei se alguém foi lá e me consolei dizendo a mim mesmo que sem dúvida na Índia as homenagens ao Mahatma seriam grandes, pois ele, com sua pregação da não-violência e seus jejuns, não se limitou a libertar a Índia do domínio britânico: começou a fazer ruir, além do britânico, os demais impérios ocidentais nos países ``de cor". Eu diria que, até agora, foi Gandhi (1869-1948) a maior figura política do século 20.
Andei procurando notícias do 125º aniversário na Índia, mas o país anda, acho eu, demasiadamente atormentado pelo retorno da peste bubônica, denominada agora peste pneumônica, para pensar naquele que imaginou livrar sua terra de todas as pestes.
Aliás, os indianos estão de novo tão perturbados que nos templos de uma cidade não longe da província em que nasceu Gandhi andam adorando ratos. Em lugar de transmitirem a peste, esses ratos a impediriam, afirma o fanático-chefe, que deixa os bichos passearem pelo próprio corpo e manda os fiéis fazerem o mesmo. Pode ser que Gandhi tenha sido homenageado em Londres, onde acabou por ganhar estátua, como adversário merecedor de deferência. Ou, quem sabe, na Bahia, onde há o bloco Filhos de Gandhi.
Seja como for, ele anda muito esquecido, exatamente porque sua pregação principal, a da não-violência pacificando e civilizando o mundo inteiro, é o que há de mais ``out" no momento. A já cansativa queda do Muro de Berlim e a já fatigada implosão da União Soviética cancelaram o medo do já idoso pavor da hecatombe nuclear, que era radical demais, quase impessoal e indolor. Mas a beatitude em que nos mergulhou o cancelamento da catástrofe liberou e fortaleceu a violência de sempre, companheira do homem desde priscas eras.
A única racionalização da violência que durou bastante tempo foi a invenção do patriotismo, que é a violência de tribos maiores e intelectualmente capazes de arranjar para ela, violência, nomes aceitáveis e até reabilitadores. Em vez de os homens se matarem quase a esmo, a matança foi definida pela criação de nações. Com a queda do Muro e a implosão etc., empalideceram nações outrora sanguíneas e sangrentas, como Marianne, Britânia, Germânia, e a violência anda agora trancada, em estado de fermentação.
A única válvula de escape são, no momento, as minorias raciais, gemendo em seu papel de saco de pancada não só na Bósnia-Herzegovina como na França de Le Pen, na Alemanha dos neonazistas. O único país que ainda desfruta do exercício da antiga e saudável satisfação patriótica da violência são os Estados Unidos, impunes e heróicos opressores do Vietnã e de Cuba, invasores da Somália e do Haiti. Absorveram e cultivaram em si todo o patriotismo cancelado pelo fim da história.
Mas ninguém, nenhum país ou indivíduo, se conforma em dar adeus à violência. Na sua peça ``Major Bárbara", sobre o Exército da Salvação, Bernard Shaw criou um tipo de convertido que saíra, como um Schwarzenegger ``avant la lettre", dos circos e feiras em que se praticavam o boxe e a luta romana. Esse crente, Todger Fairmile, era doce e paciente com humildes e desvalidos.
Mas, quando encontrava um infiel empedernido e arrogante, pregava-lhe aos gritos as palavras do Senhor e, caso fosse necessário, derrubava o incréu e se ajoelhava em cima dele, implorando a Deus que o salvasse. Era, no fundo, um inquisidor, um nazista, um fundamentalista islâmico.
E por falar em fundamentalistas é bom lembrar que Gandhi foi homenageado no primeiro romance de sucesso que escreveu Salman Rushdie. ``Os Filhos da Meia-noite". Essas crianças do título eram, como o próprio Rushdie, as 1.100 que nasceram à meia-noite do dia 15 de agosto de 1947, dia em que, cansado e exasperado de manter seu duelo com um santo esquelético e obstinado, o império britânico resolveu devolver a Índia aos indianos.
O resultado da independência, ai de nós, não foi bem aquele com que sonhava o Mahatma. Aliás, o primeiro a mostrar, a Gandhi e ao mundo, que ninguém luta impunemente contra a violência foi o fanático hindu de nome Godse, que em 1948 assassinou o Mahatma. Antes disso, porém, o império de sua majestade britânica montou, para libertar oficialmente a Índia, uma ``pageantry" digna de filme histórico de sir Laurence Olivier.
Comandando a bela operação estava o último vice-rei da Índia, Lord Loyis Mountbatten, herói de guerra e bonitão prezado entre as mulheres da Europa. Isto em 1947, quando ele e Gandhi presidiam a festa. Gandhi foi, como vimos, assassinado um ano depois. Mountbatten foi assassinado em 1979 por terroristas do Exército Republicano Irlandês. A violência não gosta destas festas de confraternização.

Vida que desanda
O primeiro historiador brasileiro, frei Vicente de Salvador, já sabia o que estávamos armando por aqui, quando, ao dar uma olhada na incipicente colonização, viu que a tendência predominante era ficarem os desbravadores à beira-mar, arranhando a areia feito caranguejos (foi esta a expressão do frade), em lugar de explorar o interior, para formar um país robusto e são.
Foi, portanto, a partir do primeiro século que lançamos as bases deste país desequilibrado em mais de um sentido, até chegar ao ponto em que um sociólogo francês, Jacques Lambert, nos descreveu como ``os dois Brasis", um que progredira e que posava de nação moderna e outro quase medieval. Em 1926, ao escrever um livro sobre o ``Juazeiro do Padre Cícero", Lourenço Filho criou para os dois Brasis uma imagem curiosamente sensorial, que nos dá uma vertigem de motorista entrando num túnel de marcha a ré:
``A um filho do Sul –habituado a cenas de renovação constante da vida, à ebulição fervilhante do progresso nas cidades cosmopolitas, teatro de agitação dos mais contraditórios interesses (...)– a impressão primeira, quando pelo Nordeste se interne, é a de que vai, como num sonho, recuando pelo tempo, a cada passo. A vida parece que desanda, inicia um giro inverso, marcando para trás duas dezenas de anos, em cada dia de viagem."
Como se sabe, o jeitinho que providenciamos para aliviar esse pesadelo foi expulsar o lavrador analfabeto da terra, empilhá-lo em favelas e transformar nossas ``cidades cosmopolitas" num pirão dos dois Brasis.
O nome que melhor assentou neste país esquizofrênico foi Belíndia, cunhado pelo economista Edmar Bacha, um dos pais do real. Foi há muitos anos, ao contemplar o Brasil, que Edmar Bacha cunhou a fórmula sábia: Belíndia não só soa bem, como se tivesse vindo de alguma toada da MPB, como nos atrela à Bélgica, país enérgico e progressista, mas meio perturbado racialmente, e à Índia, a vasta Índia de todas as grandezas e todos os horrores. Da nossa metade indiana já conseguimos até, em dias recentes, criar uma reencarnação do Gandhi, nosso Betinho, cujo fervor social intenso e ascética magreza perturbam os que comem demais, os que só pensam em si mesmos.
Quem sabe se com o próprio Bacha nos altos escalões não começaremos a assistir a um milagre da fusão, num corpo só, menos disforme que o atual, da Bélgica e da Índia que em nós carregamos? Vamos acender uma vela a frei Vicente.

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