São Paulo, sábado, 15 de outubro de 1994
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A morte anunciada da poesia concreta

DÉCIO PIGNATARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O cubismo morreu. Viva o cubismo!
Dadá não é dadaísmo, poesia não é concretismo.
Mondrian morreu. Viva Mondrian!
O Picasso de 1948 não é o mesmo de 1908, mas aquele não poderia ser sem este.
O figurativismo voltou. Viva o figurativismo!
Picasso e Mondrian jamais foram obstáculo à qualidade de um Klee ou de um Pollock. O rigorismo dodecafônico e serial não ``limou" a obra de um Stravinsky, um Messiaen, um Scelsi, um Cage.
Eisenstein não ``corta" Chaplin, Welles não anula o Fellini de ``A Estrada da Vida" ou ``Amarcord", Kubrick não exclui Altman.
Vanguarda responde como vanguarda, até que o seu fluxo inseminador impregne o ``mainstream" sanguíneo do corpo cultural, distribuindo-se por inumeráveis veias e artérias. Aconteceu com os modernistas, com João Cabral de Melo Neto, com Guimarães Rosa (a poesia concreta e o ``Grande Sertão" nasceram juntos, 1956) e –agora– começa a acontecer com ela.
Uma poesia que só começou a ter edições comerciais 20 anos depois de seu lançamento, uma poesia que mereceu duas páginas do ``The Times Literary Supplement", de Londres, há exatos 30 anos –e vem merecendo, há 40 anos, um ódio vitriólico por parte de todos quantos nada inventaram, nem mestres foram de nenhum sistema de signos artísticos, especialmente nos acadêmicos departamentos de letras.
A poesia concreta foi a perestroika poética brasileira. Os patrulheiros arrivistas nivelavam a cultura por baixo. Por exemplo: traduziam Maiakovski diretamente... do castelhano. As primeiras traduções do russo (elogiadas por Jakobson) foram obra dos irmãos Campos e de Boris Schnaidermann –e não de qualquer bolha, rolha ou trolha do Partidão ou do lúmpen cultural brasileiro.
Eu estava ausente quando teve início a polêmica provocada por um suspeitíssimo ataque do poeta Bruno Tolentino a Augusto de Campos, a propósito de uma tradução deste, e por este respondida com desprezo e ira (mais do que justificados). Mas acompanhei os desdobramentos.
Observei, então, que Marcelo Coelho, nesta Folha, ao entrar na briga, teve o condão de limpar a área, despersonalizando a batalha e colocando a questão onde ela deveria estar (e onde, em verdade, já estava, nas provocações de Tolentino), desde o início: ``delenda poesia concreta!" As traduções de alguns poemas de Hart Crane, efetuadas por Augusto de Campos, foram apenas um pretexto para os ataques do longínquo Tolentino.
Como de cinco em cinco anos vem-se anunciando a morte da poesia concreta, Marcelo Coelho decidiu aperfeiçoar o calendário do óbito: agora, seria uma questão de dias. Acho que ele está tomando o seu desejo por realidade: não pode morrer uma poesia que não nasceu para perpetuar-se e sim para inseminar novamente e inovadoramente o fazer poético, depois de um saneamento básico.
Com pique, empenho e desempenho, vem realizando muito bem a sua tarefa, bastando observar que, embora ainda sofrendo discriminações odiosas e odientas em muitos setores culturais e de divulgação, sempre teve boa acolhida na grande imprensa, ao longo dos anos, desde o ``Jornal do Brasil", dos tempos de Mário Faustino, passando pelo antigo ``Correio da Manhã", também carioca, e pelo ``O Estado de S. Paulo", até a Folha, o periódico que mais espaço tem aberto à produção poética e à sua metalinguagem, desde os tempos do ``Folhetim", na década passada.
Infelizmente, o mesmo não se pode dizer da crítica literária, cujo tônus vem decaindo na imprensa, tanto em qualidade quanto em quantidade, desde a década de 70. O mesmo pode dizer-se da crítica literária oriunda do universo acadêmico, onde nada se arrisca e onde só se opera com valores ``legitimados", em abordagens de natureza psicossociológicas, em detrimento da análise sígnica. Dados esse branco e esse vazio críticos, quase nunca se vê análise de poema experimental: a análise é substituída pelo ataque.
Na prosa, a situação é pior, embora acobertada por um ``bom-acolhidismo" de médio repertório. Como a experimentação na área da linguagem narrativa foi igualmente proibida pelos conteúdistas que se expressam em brasileirês, o romance e o conto brasileiros ficaram a reboque da prosa de ficção hispano-americana, onde ocorreu uma nova leitura das realidades nacionais e internacionais. Onde está a crítica literária do último romance do simpaticíssimo acadêmico Ubaldo Ribeiro? E onde está a crítica à ``Maria Moura", de Raquel de Queiroz? Alguém, por acaso, apontou a vinculação de ``Estorvo", de Chico Buarque, à obra de Salinger?
Poesia concreta é software de poesia, não acúmulo de coletâneas de poemas; foi matricial para vários que já vieram, está sendo matricial para muitos que estão vindo, será matricial para muitíssimos que virão.
Poesia concreta é corredor polonês poético, iniciático. Todo poeta de aspiração e fôlego mais amplos tem que percorrê-lo, tem que renegá-lo, sairá mais fortalecido da prova.
Neste século, Oswald de Andrade deu início ao processo contra a malemolência lírico-metafísica nacional, com seu poema-minuto; João Cabral pôs-se a despoetizar a poesia, com sua psicologia da composição; a poesia concreta deu andamento ao processo, com uma ideologia da composição.
Bob Wilson é um dos melhores e mais criativos encenadores atuais. Bob Wilson mereceu o prêmio de escultura, na última Bienal de Veneza, com uma instalação. Bob Wilson se declara formalista. Por um quase milagre, pudemos ver, no Teatro Municipal de São Paulo, há cerca de três anos, a sua montagem de uma peça de Ibsen, ``When We Dead Awake". Obra fascinante e instigante, de empostação a-real.
As vozes, desconectadas dos gestos, em três planos: o plano real, o plano das falas captadas por sensores fônicos e jogadas nas caixas acústicas, o plano das vozes pré-gravadas; cenografia e iluminação de ambiente em expansão; trilha sonora; e tudo controlado por computador. Sala do teatro, semideserta; platéia, semi-árida graças ao diletantismo artesanal que reina em nossa produção cênica e graças a esse fenômeno incompreensível que é o fato de não ter um teatro da voz, seja em que meio for (palco, cinema, rádio, televisão).
Daí não termos tradição de teatro em versos, daí não sabermos falar poesia. Bem, Marcelo Coelho abominou o espetáculo de Bob Wilson, Marcelo Coelho arrasou com ele. Ou foi o contrário?
Maiakovski integrou o pluriexpressional movimento formalista russo, que expandiu e projetou a moderna cultura russa, nacional e internacionalmente, da crítica literária ao cinema. Stalin decapitou o movimento e impôs às artes o retrógrado realismo socialista, através de seu esbirro doutrinário, Jdanov.
No Brasil, a ação patrulheira e castradora jdanovista se faz sentir até hoje nas mentes e mentalidades. Coisa inexplicável: a arquitetura escapou à praga estioladora, projetando-se, por isso mesmo, aqui e lá fora, especialmente através da obra de Oscar Niemeyer. E Oscar Niemeyer é formalista. Nessa linhagem e nessa linguagem, Augusto e Haroldo de Campo são formalistas.
Há formalismo nas artes, na acepção corrente aceita por Marcelo Coelho? Há. Que é formalismo? É a forma alienada. Que é a forma alienada? É aquela que oculta valores implícitos, explicitando outros, de suposta aceitação sociocultural. A arte formalista é composta de signos que já não buscam criar significados, mas que pressupõe significados, aparentando buscá-los. Qualquer poeta pode ser formalista, seja ele primitivo, de repertório médio, militante sóciopolítico ou de pressuposta vanguarda.
Vanguarda não é vanguarda simplesmente porque está à frente e sim porque é antiformalista, ideologicamente falando. Por que a vanguarda é antiformalista? Porque ela destrói os signos onde valores se congelaram, abrindo rumos e caminhos para novos signos/valores. Uma vanguarda pode tornar-se formalista? Pode. Quando institucionaliza valores que criou e não admite o advento de novos valores. Fidel Castro foi vanguarda revolucionária, hoje é formalista. A arquitetura brasileira foi vanguarda, hoje é formalista. Vanguarda é ponto de clivagem, é o momento agudo, propriamente crítico, das grandes transformações e metamorfoses.
Augusto de Campos, a maior vocação poético-tradutora do moderno universo literário lusófono, fez decidida opção pela ideologia poética. Poesia, para ele, é ideologia. Do outro lado, em balanço complementar, fica a poética ideológica.
Para Augusto, a criação tradutora é extensão da criação concreta direta. Poder-se-ia mesmo dizer que a tradução é o acervo ideológico de sua poesia, donde a importância da escolha dos poemas e poetas a serem traduzidos. Afinal, semioticamente falando, o significado de um signo é sempre um outro signo, de mesma ou diversa natureza (ou um feixe de signos).
Poesia é máscara de ferro das formulações discursivas, hipotéticas, lógicas: os muitos pêlos e cabelos discursivos sufocam-na. Compreendo muito bem a quase-angústica crítica de Marcelo Coelho, ao sentir a carência de conteúdo ou significado na poesia concreta, poesia essa que não é senão um momento de radicalidade do que se conhece como poesia moderna (do simbolismo francês para cá, digamos).
Vamos supor que tenhamos uma noção do que seja conteúdo, partindo da seguinte formulação: não há signo sem significado, nem significado sem signo, o que implica uma cadeia de remetências de signo a signo. Então: o conteúdo da poesia concreta é a poesia em versos; o conteúdo da poesia em versos é a prosa ficional quase-discursiva, cujo conteúdo é a prosa argumentativa (a filosofia, por exemplo), que tem por conteúdo as formulações científicas –e assim por diante, ``ad infinitum".
Marcelo Coelho parece estar preocupado com o ``ad infinitum" da cadeia. ``En passant", eu também: é uma das razões que me vem fazendo migrar da poesia para a prosa de ficção, num projeto difícil que já se desdobra por 20 anos, com dois produtos finais, até agora –um livro de contos e um romance (``O Rosto da Memória" e ``Panteros"). Isto para dizer que Marcelo Coelho está procurando o seu ``ad infinitum" no lugar errado: a poesia em versos e outros universos da cadeia poderão ser-lhe mais gratificantes.
Que tempo cultural brasileiro é esse em que 40 anos de tradução parecem quatro séculos? Quem traduziu poesia, neste país? Dos modernistas, só Bandeira. No pós-guerra, a atividade tradutora cresceu, dado o desrepresamento poético mundial e a nossa necessidade de atualização e modernização. Mas a escolha quase sempre carecia de um projeto. A poesia concreta instaurou um projeto tradutor de poesia.
O universo de uma língua se expande e aprimora por exercícios internos e por embates externos com outras línguas: conhecendo seus limites, ela se transforma para sobreviver. Há tarefa mais fascinante para um poeta? Porque cercear ou interromper a tarefa do maior tradutor da língua portuguesa e um dos maiores poetas brasileiros deste século –aquele que, justamente, mais contribui para suprir uma lacuna multissecular?
O súbito ataque soez de um Bruno Tolentino que se declara conhecedor do javanês (versificação inglesa) faz a figura de um espantalho de cavaleiro andante sobre a múmia de alimária. Há que dizer que o problema reside na linha de refração entre a tradição da poética dos tempos e durações e a tradição da poética silábico-acentual, dos acentos fortes e fracos, átonos e tônicos. À primeira, pertencem as literaturas greco-latina e inglesa; à segunda, as neolatinas, nas quais nos incluímos (mas a alemã também é silábico-acentual).
Para os músicos, em geral, e para um músico-poeta como Arnaldo Antunes (que contribuiu para o enriquecimento da polêmica), a questão é de fácil compreensão, embora nem sempre de fácil solução. Para os poetas, é sempre uma questão muito difícil. Falei de refração, um símile claro: a imagem do bastão se quebra na linha da superfície da água: como fazer para que ele mantenha a retidão e a retitude?
Eis porque, para mim, tradução poética sempre implica paráfrase. A questão: como ``traduzir" duração em acento? Bruno Tolentino pode conhecer o verso da língua de partida (o inglês), mas ignora o verso da língua de chegada (o português), o que indica de modo particularmente notável a sua incompetência métrico-versificatória, para não dizer poética.
Tomemos um verso de Byron: ``And where he gazed a gloom pervaded space". Tecnicamente, um pentâmetro iâmbico, um verso de cinco pés, cada qual composto binariamente e ascendentemente (um tempo breve seguido de um longo). Em tradução aceitável: ``O espaço ensombrecia ao seu olhar". Literalmente: ``Para onde quer que ele olhasse, um sombrio abatimento impregnava o espaço". Aí está o ``conteúdo", como quer Marcelo Coelho, e aí também está o mistério que o agrada.
É algo assim como uma visão cinemascópica: sons semelhantes nos dois extremos do hemistíquio, ou seja, no começo e no fim de cada metade do verso, com aquele ``gloom" fantástico no meio, onde não faltam sequer os dois olhos. Ora, esse pentâmetro iâmbico se amolda bem ao decassílabo clássico da tradição luso-brasileira, com acentos fortes e semifortes nas sílabas pares (minha tradução). Mas aquele ``gloom" tem uma tal duração que parece percorrer e/ou encobrir o verso inteiro, como duração mantida pelo pedal de um piano.
Em português, é preciso encontrar um escambo, uma troca, uma compensação, o que não é fácil, ainda mais quando se sabe que o decassílabo, assim como o alexandrino (doze sílabas), privilegia os acentos pares, o que pode induzir a uma certa monotonia.
Só os verdadeiros poetas conseguem boas tensões rítmicas e timbrísticas entre o acento e a duração –poetas como Augusto de Campos, não como Bruno Tolentino.
Tentei, certa vez, fazer um poema em que a duração fosse hegemônica: ``Poemeu poeminha poesseu poessua da flor". O resultado até que me agradou (em todo o caso, foi musicado duas vezes, por Gilberto Mendes e por Péricles Cavalcanti). Noutra ocasião, contrariei a paridade silábico-acentual do original (``La Géante", de Baudelaire), optando pela imparidade (versos de onze sílabas em lugar de doze). A dissonância não agradou nem um pouco ao meu amigo latinista Francisco Achcar (nem por isso brigamos...). E agora estou traduzindo alguns hexâmetros latinos de Juvenal em versos de 13 sílabas!
Em matéria de ritmo, estou com Bandeira: sobretudo os inumeráveis. Quase toda a obra de Camões foi composta em decassílabos e redondilhas maiores. Por que não pode Augusto de Campos compor a sua com paranomásias, paramorfismos e recursos visuais?
A poesia concreta morreu? Viva a poesia concreta! (Aproveite os últimos dias).

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